Quem tem câncer enfrenta dois problemas: o primeiro, claro, é o próprio câncer; o segundo é a discriminação que ainda existe em grande parte do mercado de trabalho .
Sim, é uma segregação que, por incrível que pareça, sobrevive mesmo depois de tantas campanhas e informações sobre a doença circulando na mídia.
É na busca e na manutenção do emprego — não raro, dentro de um ambiente competitivo por natureza — que pacientes em idade produtiva sofrem muitos de seus rápidos momentos .
Não se trata de um ou outro caso isolado. A projeção do Ministério da Saúde é que teremos 704 mil novos casos de câncer no Brasil em 2024 . É, portanto, urgente erradicar o preconceito que, de maneira mais ou menos explícita, viceja nos espaços corporativos.
+Leia também: Como reverter os perigos de passar muito tempo sentado?
Como mulher com câncer de mama , doença com a qual luto há 20 anos, e fundadora e ex-presidente do Instituto Arte de Viver Bem , que apoia pessoas com esse diagnóstico, viveram episódios incontáveis de discriminação contra pacientes no mercado e no ambiente de trabalho .
Minha herança nessa causa não ficaria completa se deixasse de lado essa questão. Falo de um comportamento ou de uma reação que afete a dignidade já abalada dos pacientes, comprometidos na batalha contra a doença.
Não é fácil. E posso falar pela minha própria experiência que ficar sem dinheiro para a subsistência é um dos maiores medos de quem tem câncer no país. Sim, antes tínhamos que encarar apenas um tumor.
Uma das consequências cruéis desse tipo de discriminação social é que ela gera crises de ansiedade , depressão e até mesmo pânico .
Isso, por sua vez, derruba ainda mais a dependência do paciente, muitas vezes já combinada pelo tratamento prescrito. Sabemos que os casos de recidiva do câncer só aumentam. Não podemos deixar que a falta de amparo e de solidariedade contribua para esse cenário.
+Leia Também: Câncer de mama: visão de uma médica (e paciente)
Minha convivência com os pacientes e seus familiares mostra que a carência de perspectiva no mercado de trabalho atinge a alma e pode ser dilacerante. Eu mesma a senti (e sinto) na pele.
Por isso, a palavra de ordem é acolhimento , até porque, embora o câncer possa importar mudanças na rotina devido ao tratamento e ao manejo de efeitos colaterais, não diminui nossa capacidade de produzir e fazer a diferença.
A discriminação, contudo, gera isolamento , e ele pode repercutir até no bolso. Esse foi o motivo pelo qual criamos, no instituto, um programa de geração de renda, com cursos para que o paciente pudesse ter opções a fim de provar seu sustento.
O preconceito, com frequência, é a principal razão, sórdida razão, que leva uma pessoa com câncer a ser demitida — ou a não ser admitida.
É como outro golpe além do diagnóstico.
“Descobrir a doença tem um impacto muito forte pela perda de controle nas tomadas de decisão em relação à própria vida”, diz o psicólogo Paulo Andrade, do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) .
“O gestor e os colegas de trabalho precisam ter um olhar cuidadoso e mais humanizado para os pacientes”, defende.
+Leia Também: Câncer de pele: o que sabemos sobre a nova vacina
Apesar dos discursos bonitos, porém, na realidade a demissão pode vir. E, não bastasse o constrangimento de se ver desligada ou não admitida, a pessoa com câncer arcará com outro entrave na sua luta com a doença: a falta de recursos financeiros.
Tratar o câncer não é barato. Sem salário, muitos cidadãos largam o convênio, as clínicas particulares e o tratamento para depender exclusivamente do SUS , que, embora preste um bom atendimento, fica cada vez mais sobrecarregado.
Os números falam por si. Segundo pesquisa do Icesp, 40% das mulheres com câncer de mama não conseguem retornar ao mercado de trabalho .
O Brasil tem uma lei — a 14.238, de 2021 — que, em seu artigo 6º, estabelece que não se admite, sob pena de punição ao infrator, negligência ou discriminação contra pessoas com câncer, o que, evidentemente, abrange o ambiente de trabalho.
Na prática, porém, ela é pouco respeitada. Inclusive, nos casos que vão ao tribunal, muitas vezes os próprios magistrados interpretam que a situação não configura discriminação.
Nesse contexto, todo faz com que, segundo levantamentos, 90% dos funcionários prefiram não falar da doença para seus chefes. Imagine só! Assim eles ficam ainda mais expostos à sensação de isolamento e impotência.
Ao contrário de muitas posições no Brasil, diversas empresas em outros países acordaram para acolher, do ponto de vista físico e psicológico , os colaboradores em tratamento de câncer.
O assunto foi abordado no Fórum Econômico Mundial deste ano, atestando a relevância de falarmos sobre o tema e nos mobilizarmos.
Alguns pontos chamam a atenção nessa discussão. Já existem exemplos de iniciativas que norteiam a busca pelo equilíbrio entre trabalho, vida pessoal e tratamento entre funcionários afetados pela doença. A conscientização dos colegas, a capacitação do paciente frente aos desafios genéticos ao diagnóstico e ao tratamento e até o bom uso da tecnologia — agora, não vivemos na era do teletrabalho? — com certeza podem ajudar a mitigar os percalços e a tirar proveito de nossas fortalezas pessoais.
+Leia Também: Câncer de mama: quem cuida de quem cuida?
E, sim, é preciso lutar contra invasores contra o estigma , que fazem a sociedade enxergar o trabalhador com câncer como alguém com sentença de morte ou incapacitado ao emprego.
Gestores ficam preocupados com a rotina de consultas e exames, com recebimento de que o colaborador não atenda às demandas. Não é verdade. O mundo é adaptável. A agenda e o item também.
Quanto mais alguém se sentir acolhido , melhor será sua qualidade de vida e mais útil se sentirá à sociedade. Depois que o CEO e chairman da Publicis, Arthur Sadoun, anunciou estar com câncer, em 2023, a agência de publicidade criou o aplicativo Day by Day, com diálogos de coaching ao vivo por meio de sua plataforma destinadas a pacientes e demais indivíduos com alguma necessidade.
Precisamos de mais ações de apoio e inclusão como essas, ainda raras no Brasil. Estamos diante de uma doença social que tem de ser curada. É rápido. Ou será que minha única saída é o aeroporto?
*Valéria Baracatt, psicóloga, jornalista e ativista, foi fundadora e presidente do Instituto Arte de Viver Bem