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Data: 04/06/2024

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Câncer de mama: novas regras para iniciar mamografias de rotina nos EUA reacendem discussão no Brasil; entenda

Novas regras para o início das mamografias de rotina nos Estados Unidos reacenderam uma antiga e delicada discussão no Brasil. O país norte-americano recomendava o rastreamento para mulheres saudáveis a partir dos 50 anos, assim como o Instituto Nacional do Câncer (Inca) define no Brasil. Agora, a Força-tarefa para Serviços Preventivos dos EUA passou a indicar o exame a todas com 40 anos ou mais, repetidos a cada dois anos.

Frota do projeto Sesc Saúde Mulher circula pelo País com oferta de exames de mamografia gratuitos a mulheres entre 50 e 69 anos

A autoridade cita dois motivos para a alteração das regras: o crescimento de diagnósticos em mulheres mais jovens e evidências que apontam para os benefícios no controle da doença em iniciar o rastreio mais cedo. No Brasil, entidades como a Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM) e a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) já adotam a faixa etária como ponto de partida desde 2012.

— Temos uma frequência de câncer de mama de mais ou menos 25% entre 40 e 50 anos. Se nós postergamos o rastreamento para 50, como é o preconizado pelo Ministério da Saúde e pelo Inca, nós negligenciamos o diagnóstico precoce para boa parte das pacientes. A SBM já questiona essa recomendação do Inca há muito tempo de uma forma bem intensa. Existe uma conversa com as instituições, mas que até agora não levou a mudanças — diz Rosemar Rahal, mastologista e membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM).

No entanto, uma reavaliação de evidências pelo Inca ainda neste ano recomendou a manutenção do rastreamento a partir dos 50. Renata Maciel, chefe da Divisão de Detecção Precoce da Coordenação de Prevenção e Vigilância do instituto, explica que, embora o aumento de casos em mais jovens seja um consenso, faltam estudos clínicos randomizados que comprovem um impacto positivo superior a possíveis riscos de ampliar o rastreamento.

Isso porque os trabalhos apontados pela Força-tarefa dos EUA são modelos matemáticos, que fazem uma previsão, diz Maciel. Já para incorporar com embasamento suficiente uma estratégia ao Sistema Único de Saúde (SUS), ela diz que são necessários trabalhos do tipo que acompanham a iniciativa implementada ao longo do tempo e fazem uma comparação.

— Até o momento, os ensaios randomizados mostraram que a melhor faixa para o rastreamento, com base na efetividade para reduzir mortalidade, se mantém entre 50 e 69 anos. Os estudos de modelagem mostram o que poderia acontecer, mas não trazem evidências muito claras em relação aos riscos. Sabemos que o câncer ocorre em mulheres abaixo de 50 anos, mas na balança de riscos e benefícios, vemos muitos resultados falso-positivos que podem levar a biópsias desnecessárias. E existe essa questão do sobrediagnóstico, que é identificar um câncer que não necessariamente iria evoluir e causar um sobretratamento — diz.

Ela conta que o Inca já havia, no ano passado, solicitado ao núcleo responsável da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) uma nova avaliação das evidências disponíveis. Neste ano, frente às mudanças nos EUA, solicitou uma nova análise. — Não foram encontradas evidências fortes o suficiente para mudar a recomendação e, após a revisão, o relatório com as conclusões será publicado — diz Maciel.

No entanto, especialistas ouvidos pelo GLOBO veem o cenário de forma diferente. Ainda que faltem estudos clínicos randomizados, que demandam mais tempo e podem demorar para refletir uma transição no perfil demográfico da doença, eles defendem que o número de casos mais jovens já deveria ser suficiente para reduzir a idade do rastreamento.

Carlos Henrique dos Anjos, oncologista clínico e membro do Comitê de Tumores Mamários da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), que também apoia os exames a partir dos 40, reforça que a tendência apresentada pela Força-tarefa dos EUA é realidade no Brasil.

Ele cita um estudo do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) que constatou que, entre as pacientes atendidas na unidade, o percentual daquelas com idades até mesmo abaixo dos 40 cresceu de 7,9%, em 2009, para 21,8% dos diagnósticos, em 2020.

— À medida que vemos um órgão bastante sério como o dos EUA diminuir a idade do rastreamento, cabe sim a discussão no nosso país se também não deveríamos reduzi-la. E temos literatura médica que apoia isso — afirma.

Segundo dados do DATASUS, os casos de câncer de mama entre brasileiras de 40 a 49 anos cresceram 35% nos últimos cinco anos e, em 2023, representavam de fato 22% dos 61 mil diagnosticados no país.

— Deixar essas mulheres de fora é deixá-las fadadas a um diagnóstico tardio, com menor possibilidade de cura e um tratamento mais oneroso para o Estado e sofrido para a paciente — diz a ginecologista e obstetra Marianne Pinotti, doutora em Obstetrícia e Ginecologia pela Universidade de São Paulo (USP) e cirurgiã do Grupo de Oncologia mamária e pélvica da Beneficência Portuguesa de São Paulo.

Maciel pondera que as mulheres não são impedidas, caso sejam orientadas, de realizar uma mamografia abaixo dos 50. Segundo dados do Inca, por exemplo, 1 dos 3,8 milhões de exames de rastreamentos feitos em 2022 foram entre 40 e 49 anos.

Lembra ainda que para mulheres que tenham suspeita de alto risco, seja por casos na família, seja por um teste genético, a recomendação geral não se aplica. — Nesses casos, elas devem fazer uma avaliação individual com um profissional — acrescenta.

No entanto, ampliar a faixa etária para mulheres saudáveis como política pública seria importante até mesmo para buscar o maior acesso ao exame, que é um outro entrave, afirmam os especialistas. Segundo os dados mais recentes do IBGE, apenas 58,3% das brasileiras entre 50 e 69 anos fazem o rastreio.

— Apesar de existirem mamógrafos suficientes no país, o rastreamento não é organizado. A maioria das mulheres que fazem são as com planos de saúde e com orientação de médicos. Estima-se que cerca de 50% das pacientes percebem seu próprio tumor, ou seja, acima do tamanho e do momento que gostaríamos, que é abaixo de 1 centímetro. Quando são encontrados no tempo certo, abaixo de 1 centímetro, conseguimos elevar a possibilidade de cura para próximo de 100% — diz Pinotti.

Rahal concorda que os cerca de 6,3 mil mamógrafos em uso no Brasil sejam suficientes. Ela defende haver necessidade de uma melhor comunicação com a população e de políticas públicas que criem estratégias para facilitar o acesso aos aparelhos. Porém, destaca que também é preciso focar nos passos seguintes após uma mamografia alterada.

— Nossa preocupação é porque não é só o acesso ao rastreamento, mas depois à biópsia e ao tratamento. E essas barreiras fazem com que o diagnóstico e o início do tratamento sejam tardios, o que reduz a possibilidade de cura. E se eu jogo a paciente com menor poder aquisitivo para ter acesso à mamografia só após os 50, o cenário é pior — defende.

Idade máxima

As novas orientações dos EUA também estipulam que as mamografias devem ocorrer a cada dois anos dos 40 até os 74. No Brasil, o Inca sugere até os 69 anos. Maciel diz que países com uma expectativa de vida mais alta têm mais benefícios:

— Em mulheres mais idosas, o rastreamento pode levar à identificação de tipos de câncer que não seriam a causa da morte daquela mulher. Então acabamos fazendo o tratamento, diminuindo a qualidade de vida, por algo que não a mataria. Mas se a mulher tiver qualquer nódulo, sintoma, acima de 69 anos, ela vai fazer todos os trâmites necessários.

Rahal, da SBM, explica que a sociedade não sugere uma idade limite: — O que preconizamos é que, enquanto eu tiver uma expectativa de vida daquela mulher de mais cinco a sete anos para frente, que continue o rastreamento. Então não é uma definição pela idade, mas pela expectativa de vida.