O mercado de consumo brasileiro começa a enxergar espaço para um aumento mais consistente no volume vendido nas lojas em 2024, após anos de encolhimento da lista de compras da população, que afetou duramente a venda de certos produtos.
O desempenho em parte de 2023 já abriu terreno para esse movimento de retomada, que pode se consolidar neste ano, com a ressalva de que depende, diretamente, da estabilidade econômica, com geração de emprego e inflação controlada, dizem consultores e empresas.
A sinalização tem sido destacada por fabricantes e redes de supermercados, atacarejos e farmácias nas últimas semanas, ainda que de forma cautelosa. Há indicadores positivos que podem, inclusive, melhorar resultados e margens dos grupos, caso se consolidem como tendência.
Levantamento da empresa de pesquisas NielsenIQ (NIQ), exclusivo para o Valor, mostra aumento de 2,6% no volume vendido em 2023, recuperando a perda dos dois anos anteriores, e com avanço de 10,9% na venda em valor, versus o ano anterior. Há projeção de nova alta para volume em 2024.
A análise considera a cesta de não duráveis, que inclui alimentos, bebidas, itens de higiene, limpeza, beleza, entre outros. Ao se isolar apenas os produtos alimentícios em 2023, o volume sobe 1,7% e o valor, 8,2%. Em bebidas, a quantidade vendida avança mais, 3%, e em higiene e beleza, a alta vai a 5,4%, a maior do relatório.
Itens de bazar (como panelas, pilhas, lâmpadas, papelaria) têm o pior desempenho, com estabilidade em 2023 sobre 2022.
Foi o primeiro crescimento na quantidade total vendida após 2021 e 2022 com recuos (veja tabela ao lado), e isso ocorreu com a receita ainda mantendo dois dígitos de aumento, apesar da perda de velocidade no faturamento frente a outros anos.
Há um efeito do acerto no “mix” de produtos vendidos por lojistas e indústria, incluindo lançamentos, diz a NIQ, além da alta de preços em categorias relevantes na composição da receita total – mesmo com a deflação alimentar de 0,5% em 2023.
Grandes marcas têm mencionado esses ajustes no portfólio. Em outubro, em uma conversa com analistas, o CEO global da Unilever, Hein Schumacher, falou do lançamento de uma maionese premium no Brasil e dos desodorantes que prometem proteção por 72 horas. E citou uma “premiunização” de produtos, com “bom impulso de volume” para os países das Américas.
A alta de 2,6% no volume total em 2023 também reflete, em certa medida, a base de comparação fraca do ano anterior, já que em 2022 houve retração de 1,6%. Mas o cenário positivo se estendeu para o começo de 2024, segundo declarações de executivos e dados divulgados na semana passada, o que indica não ser só impacto da base fraca.
Na quinta-feira (14), a pesquisa do comércio publicada pelo IBGE mostra alta de 1,1% no volume vendido de supermercados e hipermercados em janeiro frente a dezembro, considerando números com ajuste sazonal do Natal. E a receita se expandiu 2,1%.
“As empresas podem crescer em 2024 sem depender tanto de preço, mas de ganho de volume, isso considerando um cenário de estabilidade econômica, com maior renda e emprego”, diz Gabriel Fagundes, executivo de análise para a indústria da NIQ.
Segundo ele, é possível identificar ambiente para um avanço de volume “mais consistente”, com melhora de ‘mix’ de produtos e maior “trade up”, que ocorre quando cliente busca marcas de maior qualidade ou valor.
Na visão de Claudio Felisoni, coordenador do Programa de Administração de Varejo (Provar), e professor titular da FEA/USP, é preciso considerar sinais que já apareceram de risco de instabilidade econômica – reflexo do ambiente político ainda tenso e de novas pressões de preço após janeiro – e que podem interromper esse processo de normalização no volume.
“O IPCA de fevereiro de 0,8% foi notícia péssima nesse sentido, e o acumulado até fevereiro está acima das projeções do Banco Central”, diz. “Vamos ter que ficar de olho se, com ambiente mais inflacionário, a redução da Selic não desacelera, porque aí, muita inflação impacta na confiança do consumidor e afeta esse processo de recomposição de volume”.
Uma aceleração nos preços de alimentos já preocupa o governo, que, nesta semana, estuda formas de evitar novas altas.
Fagundes, da NIQ, lembra que, nos anos anteriores, havia um “gap” maior entre a variação de volume e preço, em parte, por causa do forte reajuste nas tabelas das lojas após a pandemia.
Em 2020, com desequilíbrio entre oferta e demanda em plena crise sanitária, a inflação alimentar superou 18%. Em 2022, a taxa foi de 13,2%, as famílias cortaram a lista de compras e o volume encolheu 1,6%. Ou seja, uma diferença de quase 12 pontos percentuais. Apenas em alimentos o volume caiu mais, 2,5% em 2022. Esse “gap” diminuiu em 2023, como efeito de recuperação inicial do volume e menos reajustes de preço.
Números de rendimento e emprego mostram que, em 2023, aumentou em 1,6 milhão o total de pessoas ocupadas no país (o percentual de ocupados é o mais alto desde 2015), e a renda real, descontada inflação, subiu 3,1%
Em 2023, segundo o IPCA, houve deflação de alimentação nos domicílios de 0,5%, e para este ano, a projeção é de uma alta de 4% a 5%.
No ano passado, 35 das 50 categorias de produtos pesquisadas tiveram ganho de volume e de valor. Até setembro, isso ocorria com menos produtos (29 categorias) e agora esse avanço está se espalhando, com destaque para itens como suco pronto, desodorante, creme para pele, energéticos. No lado oposto, perdendo volume e venda, estão leite, salsicha e café.
Apesar do ganho, é preciso cautela por conta dos riscos do cenário ‘macro’”
A pesquisa da NIQ é uma das mais tradicionais do setor, composta por dados enviados por varejistas. Inclui também auditoria nas lojas – cerca de 1 milhão de pontos de venda compõem o estudo.
Esses dados vão ao encontro do que as empresas têm percebido nos últimos meses.
O CEO do Carrefour Brasil, Stéphane Maquaire, disse a analistas, em fevereiro, que a empresa vem acompanhando a volta da inflação alimentar nos últimos dois a três meses, mas com “volumes mais dinâmicos” na venda do atacarejo às empresas (restaurantes, padarias, hotéis etc). O grupo é dono do Atacadão.
A companhia sentiu efeitos da deflação até setembro, mas tem observado tendências de melhora tanto em volume quanto em inflação, que aumentam receita, após a metade de novembro. Questionado por analistas, Maquaire disse que, apesar do foco do Atacadão em volume, a empresa não vai “cair em ofertas demais” para isso.
O comando do GPA disse em fevereiro que teve uma alta de 4,2% nas vendas de lojas que operam há mais de um ano, no quarto trimestre, suportado pelo maior volume. Foi algo percebido na rede de Pão de Açúcar, e no caso da Extra Mercado, isso ocorreu em perecíveis.
Na visão da direção do Assaí, o começo de 2024 teve uma ajuda de ganho de volume, mas também de alguma inflação, mas o primeiro teve peso maior no desempenho.
“A gente tem visto o início do ano bem mais positivo, e acho que até um pouco mais positivo do que o quarto trimestre [de 2023]”, disse a analistas o presidente da rede, Belmiro Gomes. “E o ganho tem vindo muito mais de volume do que por inflação”. É o oposto do cenário de parte de 2020 e 2021.
“O consumidor está com um pouco mais de recursos, passada a fase de reduções de cesta, troca de marcas, um ‘trading down’ gigantesco”, diz ele. Neste ano, o Assaí viu volatilidade forte em preços de alimentos “commodities” (arroz, óleo), com o sobe e desce de preços, e diz que a inflação deve ajudar na receita do começo do ano.
Na ponta da cadeia, entre as indústrias, a M. Dias Branco (dona de marcas como Adria, Piraque e Jasmine) teve recorde de receita em 2023, de R$ 10,8 bilhões, fruto da expansão de 4% nos volumes e de 2,9% no preço médio.
Além de um possível ganho no volume comercializado, a possibilidade de alguma inflação alimentar em 2024 deve ajudar nos resultados operacionais das redes.
Pode não fazer sentido à primeira vista, mas nos itens de supermercados e farmácias, um certo aumento de preços pode ser positivo, porque o seu consumo é obrigatório. E isso melhora a receita nominal.
Mas essa conta não funciona de forma tão simples. O consultor Manoel Araujo, diretor da consultoria Martinez de Araujo lembra que anos de muita inflação, seguidos de deflação, ou de altas e quedas em volume, são ruins para o negócio. “Parece uma maravilha pensar que a empresa não ganha em volume num ano, mas a inflação faz a receita nominal subir”, diz. “Acontece que é uma euforia falsa, uma ilusão. E isso mexe com a operação, porque se vende muito dia 5 e 20, e depois a loja fica às moscas.”