Nem mesmo o sinal amarelo acionado pelo IPCA de janeiro e pelos dados de inflação nos Estados Unidos, que ficaram acima do esperado pelo mercado, foram suficientes para esvaziar o otimismo dos agentes em torno do processo de convergência do índice de preços brasileiro em direção à meta de 3%.
Nas últimas semanas, aumentou entre os participantes do mercado a sensação de que a inflação pode encerrar este ano em níveis ainda mais baixos, o que já começa a se refletir nos preços dos ativos. Como consequência, também têm crescido as apostas em um ciclo mais extenso de redução da taxa Selic, que poderia cair abaixo de 9% ao ano já em 2024. Os juros básicos estão hoje em 11,25%.
O fenômeno foi reconhecido pelo próprio presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, em comunicações recentes. Ele destacou a queda das taxas de inflação “implícita”, ou seja, extraída dos DAPs, os contratos futuros de cupom de IPCA, um derivativo que serve como aposta para o nível da inflação em determinado período.
A expectativa de inflação para o fim deste ano saiu de 3,98% no fim de 2023 e tocou os 3,46% nas mínimas do ano, antes de voltar a exibir alguma alta devido aos números um pouco mais altos do IPCA de janeiro e às surpresas inflacionárias nos EUA. Por ser um ativo de risco, é natural que o mercado exija um prêmio, que já está embutido nesse número. Assim, ao se imaginar o DAP sem essa “gordura”, a sensação entre os agentes é de uma inflação bem próxima da meta e abaixo das projeções do próprio boletim Focus (3,82%).
“As inflações implícitas estão todas em queda”, disse Campos Neto em evento no início de fevereiro. “Existe uma credibilidade em relação ao que está sendo feito”, enfatizou.
As declarações foram dadas antes de o IPCA de janeiro ser divulgado. O número veio acima das expectativas dos agentes e mostrou uma piora na composição do indicador, com surpresas de alta nos preços de serviços subjacentes. Isso, porém, não intimidou apostas mais ousadas no processo de desinflação à frente, nem na possibilidade de os juros caírem mais que o previsto.
“A inflação, de fato, parece bem controlada. O número de janeiro parece contaminado por serviços financeiros, que não têm muito a ver com o mercado de trabalho. Na nossa projeção, acreditamos em uma volta desse componente. Tirando isso, todo o restante dos preços de serviços parece mais comportado”, diz Gustavo Pessoa, sócio e gestor de renda fixa da Legacy Capital.
A gestora tem vocalizado um cenário de inflação mais benigno que o consenso, ao projetar o IPCA em 3,2% no fim deste ano. Com isso, tem apostado em juros também mais baixos, ao ver a Selic caminhando para 8%, dos atuais 11,25% ao ano.
Na visão de Pessoa, a postura “muito cautelosa” do BC no atual ciclo de flexibilização monetária tem contribuído para uma visão de um IPCA próximo ao centro da meta. “E estamos trabalhando com juros reais ainda bastante restritivos. O BC tem um longo caminho pela frente para ir cortando. Achamos que a Selic deve chegar a 8%, que, ainda assim, seria uma taxa um pouco restritiva. Claro, existem riscos no meio do caminho, mas com os bancos centrais desenvolvidos começando a cortar os juros em maio, o nosso BC vai ficar confortável em dar mais continuidade à queda dos juros.”
E é nesse sentido que, em seu portfólio, a Legacy trabalha com posições aplicadas em juros nominais e reais no Brasil. “É a nossa aposta. O mercado está precificando uma taxa final de mais ou menos 9,5% e achamos que ela será de 8%. É um bom espaço para um fechamento [queda] dos juros”, diz Pessoa. Ele revela não ter posições em inflação implícita, mas observa que a queda das taxas foi relevante. “Grosso modo, elas estão rodando em 3,5% e, tirando o prêmio de risco, estão praticamente na meta. O mercado parece acreditar que a inflação pode ir para a meta.”
Os motivos para a visão benigna do mercado em relação à inflação vêm se multiplicando. Os investidores têm atribuído um viés de baixa nos preços mais voláteis, como os de passagens aéreas e gasolina e há, ainda, uma avaliação de que o fenômeno climático El Niño, que gerava preocupação especialmente para a inflação de alimentos, pode terminar antes do esperado e, assim, ter efeitos mais contidos na inflação neste ano. Outro ponto que começa a entrar no radar dos agentes é a chance de uma mudança na cobrança do ICMS sobre tarifas de distribuição de energia, tema cujo julgamento está em pauta no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e que pode retirar cerca de 0,4 ponto percentual do IPCA neste ano.
Essa questão, inclusive, é destacada pelo chefe de renda fixa e multimercados da BNP Paribas Asset Management, Michael Kusunoki. Para ele, caso o cenário, ainda incerto, de uma inflação menor neste ano se materialize, é possível que haja uma revisão para baixo nas expectativas para o IPCA de 2025, que estavam paradas havia mais de seis meses em 3,5% e exibiram uma ligeira elevação para 3,51% no último Focus.
“Isso, junto com um ambiente de apreciação do real, é um motivo que poderia fazer com que o mercado passasse a apostar em uma Selic terminal [no fim dos cortes] menor do que vem precificando atualmente, ao redor de 9,5%”, afirma. O cenário-base da BNP Asset contempla o juro básico em 8,5% no fim do ciclo.
Diante de um início de ano marcado por algumas surpresas positivas no comportamento da inflação, com pressão menor em itens relacionados à educação e ao licenciamento de veículos, Kusunoki revela que a BNP Asset trocou parte das posições em NTN-Bs, títulos do Tesouro atrelados ao IPCA, por apostas na queda dos juros nominais. “Ainda preferimos a NTN-B, que oferece uma volatilidade menor, para surfar o ciclo de queda de juros, mas, de maneira circunstancial, podemos ter um risco de inflação para baixo. Por isso, fizemos a troca de uma parcela das NTN-Bs para juros prefixados.”
A BNP Asset ainda vê espaço para a continuidade de queda nas taxas reais e nominais no Brasil. No entanto, de acordo com Kusunoki, o IPCA de janeiro acendeu um sinal amarelo. “Foi o segundo número que mostrou uma piora marginal nos preços de serviços subjacentes. Nada que mude o cenário, mas é um ponto de atenção e devemos monitorar. Continuamos com uma visão mais otimista de inflação no curto prazo. Nos próximos meses devemos ter uma pressão menor de alimentos.”
No IPCA de janeiro, a média móvel de três meses da inflação de serviços subjacentes saltou de 4,20% para 5,39% em termos anualizados e dessazonalizados. Diante da ênfase que o Banco Central tem dado ao comportamento dos preços de serviços e à dinâmica do mercado de trabalho, que segue bastante aquecido, um sinal de alerta foi acionado, o que gerou alguma correção nos preços dos ativos brasileiros, acentuada na semana passada pelos dados de inflação nos EUA.
“Acho que a história positiva não saiu do trilho, mas uma taxa terminal abaixo de 9% pode precisar de um gatilho um pouco mais forte para ocorrer”, diz o sócio e diretor de investimentos da Azimut Brasil Wealth Management, Leonardo Monoli. “Antes, a sensação era de que havia um risco muito grande de a Selic cair abaixo dos 9%, mas, após o dado, uma Selic nesse nível parece passar mesmo a ser o ponto central das estimativas”, avalia.
Assim, para ele, será fundamental aguardar a leitura do IPCA de fevereiro e, caso o comportamento se repita, será o terceiro número seguido de inflação subjacente de serviços com alguma piora na margem. “É uma inflação um pouco mais inercial e pode atrapalhar a trajetória da Selic. Não que o BC irá parar de cortar os juros, mas o mercado pode começar a discutir como será a comunicação para as reuniões após aquilo que já foi sinalizado pelo Copom [Comitê de Política Monetária]”, destaca.
Apesar do IPCA ter indicado alguma piora na composição do índice no curto prazo, a Azimut mantém em seu cenário-base a continuidade da desinflação, que fará o BC levar a Selic até a faixa dos 9%. Na estratégia da casa, o cenário é traduzido por uma exposição acima da estrutural em crédito privado de empresas “high grade” (com baixo risco) e, na sequência, por posições aplicadas em juros reais e nominais no Brasil.
Quanto à possibilidade de uma composição menos benigna da inflação à frente e seus impactos no cenário prospectivo para os juros, a economista Stefanie Birman observa, na apresentação do cenário econômico da BTG Pactual Asset Management, que o balanço de riscos da projeção da casa para o IPCA, de 3,8% no fim do ano, é inclinado para baixo. “Isso corrobora a nossa visão de que o juro poderia ir mais para baixo”, enfatiza, ao projetar um juro entre 8,5% e 9% no fim do ciclo de afrouxamento monetário.
“Quando olhamos para a inflação estrutural, temos visto a média dos núcleos rodando ao redor da meta, em torno de 3%. Tem riscos de itens mais voláteis para baixo, mas a média dos núcleos está rodando em torno da meta”, diz Birman. Ela também nota as surpresas de alta recentes na inflação de serviços, mas ressalta que alguns itens são mais voláteis. “Foi muito para baixo [no ano passado], eventualmente agora está vindo um pouco mais para cima, mas tem que ter um peso também para a média dos núcleos, que está rodando em torno de 3%.”
De acordo com ela, “existe um risco de ser uma inflação mais baixa”, talvez não de 3%, mas com uma aproximação da meta. “Inclusive, para 2025, nossa projeção é de [inflação a] 3%. Se o nosso cenário estiver correto, provavelmente as expectativas de inflação poderiam cair também”, afirma.
Birman aponta que o movimento não é rápido, mas revela um cenário mais benigno que deve ser acompanhado de perto ao longo dos próximos meses.
Na visão de Julio Fernandes, sócio e cogestor dos fundos multimercado da XP Asset Management, “a Selic, mais do que nunca, está caminhando para um nível abaixo de 9%”. Em “call” mensal da gestora, ele avalia que, de um mês para cá, a confiança de que a inflação deste ano deve ficar mais próxima de 3,5% do que de 4% aumentou. “Fazendo uma conta simples, com uma inflação de 3,5%, se a Selic parar em 9%, falamos de um juro real acima de 5%, que é muito forte para uma inflação que já está convergindo para a meta. Nosso cenário de Selic é mais para a casa de 8,5%, que ainda é restritivo na visão do Banco Central”, diz.
Ele ressalta, ainda, a possibilidade de haver uma surpresa para baixo na inflação, diante das discussões sobre a saúde da economia chinesa e de possíveis impactos nos preços das commodities, que poderiam levar a inflação para algo ao redor de 3%. “Quem sabe a Selic vai para 8%…”, diz. “Uma das maiores convicções é a de que os juros vão continuar caindo. O mercado precifica uma Selic de 9,5% e a assimetria está para baixo”, afirma. Nesse sentido, Fernandes avalia que a XP Asset deve aumentar posições aplicadas em juros nominais e reais no Brasil.