Para o CEO do Grupo Carrefour Brasil, ninguém é competitivo em preço se não for competitivo em custo
Por Adriana Mattos, Valor — São Paulo
02/12/2025 12h21 Atualizado agora
A loja do Carrefour do Alphaville, em Barueri (SP), está implementando um projeto piloto para troca do sistema de gestão dos itens vendidos no Carrefour pelo utilizado pelo Atacadão.
Chamado de ERP (sigla em inglês para planejamento dos recursos empresariais), a mudança deve avançar para todas as lojas da varejista. É como trocar o software do cérebro comercial de uma empresa pela outra. Isso é só uma sinalização do que está por vir. A pouco metros dali, também está em andamento o processo de fechamento da sede do grupo Carrefour Brasil, em Barueri (SP) e a migração de toda a equipe para o escritório central do Atacadão na cidade de São Paulo.
Funcionários foram informados há apenas um mês e o pessoal deve ser transferido no segundo semestre de 2026.
A sede do Atacadão na Vila Maria, zona norte da capital, irá receber as áreas de negócios, como comercial, logística e operacional. Já o administrativo (“back-office”) irá para o Atacadão no Tatuapé. É, finalmente, o começo da integração dos times da maior rede de varejo da América do Sul, com R$ 120 bilhões de vendas brutas anuais, quase 20 anos após a fusão das redes.
Não se trata apenas de uma realocação para corte de despesas, apesar de ter esse impacto. São cerca de 2,5 mil pessoas na sede do grupo, o chamado “Campus”, criado em 2023 por R$ 50 milhões, apurou o Valor, na gestão do ex-CEO Stéphane Maquaire (que deixou a cadeia para liderar o Club Med) e de Cátia Porto, ex-vice-presidente de recursos humanos. No Atacadão, são 900 pessoas no back-office.
A ideia na época, dizia o comando, era “somar, inovar e pensar sem fronteiras”. O local foi inaugurado com área de descomprensão, salão de beleza, lavanderia, espaço pet e academia, numa versão local de “Google” do varejo. Só que o setor não tem margem de empresa de tecnologia, ou enfrenta o pesado sobe e desce dos juros e da inflação.
Tanto a integração das sedes como a unificação dos sistemas comerciais das lojas explicam a lógica da gestão do novo CEO do grupo Carrefour Brasil, o argentino Pablo Lorenzo, com 30 anos de Carrefour, para os próximos anos. “Pablo quer trazer a realidade de volta”, diz um membro do conselho de administração global. Isso significa tratar o varejo como ele é: um negócio que vive de rentabilidade gerada com volume e escala, e vida espartana, e de priorizar agora aquilo que dá dinheiro.
“Se o Stéphane era o homem do ‘corporate’, da matriz, o Pablo é mais do business, do comercial, e ele abraçou a determinação da França de colocar o Atacadão definitivamente no centro do negócio e trouxe isso para ele. Tornou isso uma obstinação, mais do que o Stéphane, que tinha outros problemas para resolver”, diz uma segunda fonte.
Projeção de impacto
Em entrevista ao Valor na sede, Lorenzo fala, diversas vezes, em acelerar o processo de transformação e de simplificação iniciado há dois anos. “A mentalidade tem que ser nunca parar de simplificar”, disse. “Quando me chamaram, disse que iria ao Brasil se eu tocasse isso [projeto de unificação e simplificação]. E a próxima etapa é como podemos ser mais simples na nossa administração interna entre o Carrefour e o Atacadão”, afirmou Lorenzo, que esteve 16 anos na Argentina, e dois anos como CEO.
Na visão dele, o varejo tem que ser um negócio de muito baixo custo porque ainda tem baixa produtividade, e quando se tem três operações, não se consegue ser eficiente. Mas o back-office já pode ser o mesmo. “Eu tenho um sistema comercial em Atacadão e no Carrefour outro. Que diferença faz vender o produto A, B ou C que são iguais nos dois? Nenhuma. O sistema comercial não faz diferença nesse aspecto. Além disso, por que precisamos ter três back-offices quando o que realmente precisa ser diferente é o sortimento? Ou o atendimento na loja?”
Lorenzo diz que, como o grupo ainda não tem os mesmos sistemas comerciais, não é possível, por exemplo, enviar mercadorias de um hipermercado para um Atacadão, eventualmente numa ruptura de mercadorias entre os modelos, e se está trabalhando para isso, mas ele não cita prazos. O Carrefour comprou o Atacadão em 2007, e passou, anos com sistemas de gestão separados por grupos.
Para o executivo, ninguém é competitivo em preço se não for competitivo em custo. “Isso não existe. É por isso que estamos com o laboratório [do ERP] em Alphaville. Só de ter o mesmo sistema em todos os lugares é uma enorme redução de custos”, disse. Perguntado se um maior impacto desse processo pode ser visto nas contas nos próximos 12 a 18 meses, Lorenzo vê como possível um efeito ao longo de 2026 e 2027.
Não é à toa o foco dele no tema — na ponta do lápis, todos os formatos andam diluindo menos custos do que poderiam. De janeiro a setembro de 2024 para mesmo período de 2025, a margem operacional (calculada após vendas e despesas) subiu magros 0,07 ponto — de 3,85% para 3,92%, calculou o Valor.
No acumulado de janeiro a setembro, o balanço mostra alta de 8,5% nas despesas operacionais do Atacadão, para R$ 5,5 bilhões, para uma alta menor, de 5,8% nas vendas líquidas. Os supermercados e hipermercados do Carrefour encolheram 3,7% em receita, para uma redução de custos mais tímida, de 2,7%
logo, sem gerar alavancagem operacional. O caçula do Sam’s Club sobe em 8% custos para uma alta de pouco menos de 5% em venda no acumulado de 2025.
Os riscos do projeto
Nesse aspecto, é que se levantam dois pontos principais: um eventual risco de efeito no serviço ao cliente, ao simplificar muito os negócios, e possíveis problemas que podem ser gerados ao mexer do ERP de uma operação.
A questão é que, ao alterar sistemas, uma das opções na mesa é cortar itens do hipermercado para caber no sistema do Atacadão. E o diferencial do hiper, frente ao atacarejo, é exatamente uma gama maior de opções.
Segundo um ex-executivo do Carrefour, o sistema do Atacadão é desenhado para a lógica simples do compra e venda, o chamado “código fechado”, que não suporta a complexidade das fichas técnicas de padaria confeitaria e cafeteria, por exemplo, do hiper. “E pelo que está sendo testado, a decisão do grupo não foi evoluir, mas reduzir o sortimento do Carrefour para caber dentro das limitações do software do Atacadão”, afirma ele.
“Isso jogaria clientes das classes A e B que ainda vão no hiper buscar algo a mais no colo dos supermercados premium.”
Lorenzo diz que os diferenciais dos negócios, percebidos na visão do cliente, estão sendo protegidos, até porque não faria sentido manter as operações de cada rede — atacado, varejo e clube de compras — se não fosse dessa forma. Ainda afirma que as pesquisas mostram aumento da nota que mede a experiência do cliente (NPS) neste ano — “o NPS do Brasil é o maior da rede no mundo”.
E também afirma que certas decisões ainda não estão totalmente tomadas sobre o ERP, mas que haverá novas integrações necessárias, mesmo que isso gere reações negativas iniciais.
Esse é um ponto central, já que a cultura de varejo do Carrefour, o seu DNA, sempre foi forte do grupo, e é nesse vespeiro que Lorenzo começa a mexer.
“Atacarização”
Na visão do presidente do grupo Carrefour os formatos estão se “interconectando” , e nesse processo, os hipermercados se “atacarizaram”. Isso ocorreu quando essas lojas começaram a vender produtos com preços de atacado, em 2024. E ao mesmo tempo, os atacarejos estão com mais cara de hiper desde que passaram a somar mais serviços de cinco anos para cá.
É uma mistura que exige mais da administração dos formatos, na atual disputa por consumidores. Lorenzo conta que, pelas pesquisas da empresa, o brasileiro usa, em média, nove formatos de lojas ao longo da vida inteira, dada a forte competição — de atacarejos à mercadinhos e lojas de postos de gasolina — e eram três dez anos atrás.
E nesse movimento de aproximação de formatos, havia diferenças de preços de 15% a 20% do atacarejo ao varejo seis ou sete anos atrás — quando era um formato com custos mais baixos, sem açougues ou padarias — e ele admite que isso caiu, podendo variar de 5% a 7% hoje. Nas promoções nos hipermercados, essa vantagem pode até desaparecer, disse.
Ou seja, o hiper começa a virar um concorrente mais direto ao atacarejo, tema recorrentes hoje nas conversas nos bastidores das empresas.
Sobre isso, Lorenzo vê como inevitável o cruzamento dos canais, assunto que traz a reboque o risco de canibalização dos formatos. Será que um não irá engolir o outro? “São complementares, não vejo esse problema, tem propostas diferentes e o Carrefour é o único que mantém as três [super, hiper, atacarejo]. E sobre o hiper, ele não tem futuro se continuar como está. Se for possível adaptá-lo, ele tem um futuro muito promissor”, afirma.
Pelos dados, o desempenho geral de janeiro a setembro mostra vendas de R$ 88,2 bilhões, mas ao se considerar apenas vendas líquidas são R$ 82,5 bilhões uma alta de 3,5%, abaixo da inflação acumulada pelo IPCA/IBGE de 5,17%. São números que sentem volume menor impactado por alta dos juros que elevaram endividamento das famílias.
De janeiro a setembro, as vendas de lojas com mais de 12 meses cresceram na mesma faixa 3,6%. Ao se considerar o efeito do câmbio, a receita em euros cai quase 7%.
O executivo descarta acabar com o formato de hiper, mesmo após seu encolhimento por causa de margens ruins — são 112 unidades, e devem ser convertidas mais algumas lojas nos próximos anos em Atacadão, modelo mais rentável. A ideia é ficar com uma operação de hiper com 100 unidades no Brasil, em média.
Marca própria chega
Lorenzo ainda adiantou ao Valor que a empresa lançará neste mês a sua marca própria da rede Atacadão, para pessoas físicas e jurídicas, que devem chegar às lojas nos próximos dias. O Valor apurou que serão na faixa de 80 a 150 itens na primeira etapa e em mercadorias que são fortes no canal, como arroz, feijão, café, entre outros. A empresa não comenta números. O concorrente Assaí anunciou dias atrás o plano de entrada, possivelmente em 2026, e o Atacadão já vinha com o projeto em andamento desde o começo do ano.
A ideia é ter diferentes marcas próprias para venda para as pessoas jurídicas, com diversas possibilidades de compras para bares, restaurantes, hotéis, e ter uma marca para pessoas físicas. Foi algo utilizado na Argentina, quando Lorenzo atuava na rede, e replicado na Europa. A expectativa é que serão dois a três anos de desenvolvimento até ganhar maior tração e peso na receita. A empresa não projeta potencial de receita das marcas.
Valores de investimentos
Esse plano está dentro do projeto de investimento deste ano e do ano que vem. Sobre o tema, a companhia está em fase de análise e aprovação dos números, mas a expectativa é de aberturas de lojas num volume “um pouco acima” de 2025. Neste ano, serão seis aberturas, todas do Atacadão, e nenhum hiper ou super (dos seis, cinco foram lojas novas e uma é conversão de híper).
Para 2026, esse número deve girar entre 10 a 15 unidades, apurou o Valor — esse piso, numa análise mais conversadora — e novamente sem hiper ou super, negócios que continuam foram das prioridades, já que o foco é Atacadão, grande gerador de caixa. São, em média R$ 80 milhões por loja.
A respeito de valores, de janeiro a setembro, foram R$ 1,1 bilhão investidos, segundo balanço, e essa soma deve girar em torno de R$ 1,5 bilhão no acumulado de 2025, diz o CEO. Se chegar nisso, será inferior ao ano passado, quando alcançou R$ 2,1 bilhões, e a empresa já não tinha efeito nesse número dos gastos com a fusão do grupo Big.
Para 2026, a empresa espera uma leve queda dos juros, e o real mais forte — mas um aceleração de investimentos dependerá de um cenário mais positivo.
“O plano vai depender de juros, câmbio e do consumo. Se, em algum momento, virmos que o consumo acelera e a taxa de câmbio do euro cai, aceleraremos nossa expansão”, diz ele. Aumento dos juros, real fraco e perda de vigor das vendas “mesmas lojas” (com mais de 12 meses) de 2024 para 2025 fizeram a empresa a segurar o caixa nos últimos tempos.
Consumo x dívida
A respeito do ambiente de consumo, Lorenzo esteve em conversas com Belmiro Gomes, presidente do Assaí, Marco Oliveira, CEO do Atacadão, e Alexandre Bompard, CEO global do Carrefour, três semanas atrás, numa loja do Assaí, como antecipou o Valor. Ali falaram de vendas “mesmas lojas” fracas, de efeito das bets tirando recursos do mercado, e do impacto do endividamento das famílias sobre o orçamento da população.
Nesses períodos, como agora, o trabalho feito está em adaptar os sortimentos às necessidades. “Percebemos que o consumidor tem dificuldade em fechar as contas e isso é especialmente perceptível na segunda quinzena do mês. A diferença
entre a primeira e a segunda quinzena do mês é muito reveladora. Então, entramos com preços mais competitivos, com mais produtos regionais”, disse.
Detalhes sobre a sede
Na mudança envolvendo a sede do Carrefour para São Paulo, não está prevista a unificação da área de comercial, de compra das diferentes empresas, no Atacadão. Será mantida a autonomia das áreas de varejo e atacarejo, e além disso, já está sendo planejada a reforma da estrutura do Atacadão para acomodar as transferências, apurou o Valor.
A intenção é que isso seja feito com o menor ruído possível, especialmente na acomodação das equipes, considerando a mudança relevante de estrutura. O Atacadão opera no mesmo local há décadas e não tem as mesmas áreas de convivência que o Carrefour oferece. Ele terá que absorver mais de duas vezes e meia o total de empregados que hoje operam em seus escritórios — sem descontar cortes de pessoal ou decisão de saída de funcionários.
O Valor apurou que o grupo deve ter uma diminuição de equipe por conta de sobreposições na área administrativa, o que gerará uma economia na integração, e que isso já está sendo considerado nos ganhos de eficiência.
Lorenzo não vê dificuldades nesse processo, e evita comentar se foi um erro o projeto do “Campus”. “Antes de virmos para cá, estávamos em uma parte do Morumbi, e uma parte de Vila Maria. Não vejo um grande desafio nisso. Nós conseguimos nos adaptar durante uma pandemia, com todas as dificuldades que tivemos, trocar de mesa de um lugar para outro. E há uma vantagem nisso, que é ter o metrô lá, é melhor do que aqui”, diz.
— Foto: Claudio Beli/Valor