Veículo: Exame
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Data: 20/08/2025

Editoria: Shopping Pátio Higienópolis
Assuntos:

Por que o varejo está virando banco — e o que isso diz sobre o futuro do consumo?

Durante muito tempo, o varejo operou em uma lógica simples: atrair, vender, repetir. A eficiência estava na operação, e o crescimento vinha da escala. Mas essa equação já não fecha sozinha. Com margens comprimidas, aumento do custo de capital e um consumidor cada vez mais conectado e exigente, o setor precisou rever sua proposta de valor. A resposta tem sido cada vez mais clara nas mesas de negociação de M&A: transformar o varejo em plataforma financeira.

Esse movimento vai além da busca por novas receitas. Envolve assumir um papel mais relevante na vida do consumidor, oferecendo crédito como ferramenta para garantir acesso e continuidade no consumo. Mas não se trata de qualquer crédito, e sim de um modelo inteligente, responsável e centrado no relacionamento. Um bom exemplo é o antigo “Carnê do Baú”, em que o cliente voltava à loja mês a mês para quitar as parcelas da geladeira, e assim, para além do crédito, criava-se vínculo, recorrência e fluxo de loja.

A aquisição – ou criação – de fintechs por grandes redes varejistas não é uma tendência passageira, mas um movimento estratégico com implicações práticas. Ao dominar soluções financeiras, como meios de pagamento, crédito e contas digitais, o varejo deixa de depender de terceiros para viabilizar o consumo. Passa a ser, ele mesmo, o facilitador. E isso muda tudo: margens, modelo de negócio, relacionamento com o cliente, e, sobretudo, a previsibilidade da receita.

É uma lógica que já se comprova no mercado

Acompanhei de perto um varejista que criou uma fintech especializada em oferecer crédito para negativados, público que ele já atendia no varejo físico. Em pouco tempo, essa nova operação passou a representar 20% do faturamento total da companhia. Assim, essa estratégia não se trata apenas de um “novo produto”, mas de uma reconfiguração da proposta de valor. Não é mais sobre vender a TV, mas sobre financiar o desejo de tê-la com saúde.

Na prática, esse movimento insere o varejo em um novo setor: o dos serviços financeiros. E aqui, os ativos mais desejados são claros. Fintechs com tecnologia proprietária, motores de crédito calibrados, APIs prontas para escalar rapidamente estão no centro das estratégias de aquisição. Isso porque, além da margem mais atrativa, elas permitem um cross-sell altamente eficiente com uma base de clientes já consolidada e, muitas vezes, subaproveitada.

Naturalmente, há desafios. A integração entre operações tão distintas exige mais do que sinergia, é necessário convergência real de propósito e direção. Varejistas acostumados com ciclos longos de decisão muitas vezes enfrentam fricções com o mindset ágil das fintechs. A falta de um planejamento de governança robusto pode levar à perda de talentos, descontinuidade da inovação e erosão de valor. Por isso, é essencial começar com clareza de papéis, definição de objetivos comuns e preservação da autonomia da fintech, ao menos no início.

Por fim, é impossível ignorar a complexidade regulatória

O sistema financeiro brasileiro é exigente, e com razão. Bancarizar uma base de clientes demanda não apenas tecnologia, mas estrutura legal e compliance afinado. O licenciamento no Banco Central, seguindo as regulamentações exigidas, regras de PLD (Prevenção à Lavagem de Dinheiro), KYC (Know Your Client) e LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), precisam estar no radar desde o início do deal, sob risco de comprometer não apenas a operação, mas a reputação da empresa.

De fato, o varejo brasileiro está deixando de ser apenas um ponto de venda, e se tornando uma infraestrutura de consumo. Quem dominar essa transição com visão estratégica, capacidade de execução e respeito às especificidades do setor financeiro estará mais bem posicionado para disputar o futuro. Porque nesse novo jogo, não ganha quem vende mais, ganha quem constrói relacionamentos duradouros, recorrentes e rentáveis com o consumidor.