Há um volume expressivo de dados já coletados pelo Ministério Público Federal de São Paulo que sustentam as investigações de supostos crimes fiscais cometidos por varejistas no país. Sobre a rede Fast Shop, os promotores localizaram contrato da varejista com a Smart Tax, acusada de operar o esquema, com a assinatura de Julio Atsushi Kakumoto, um dos membros da família Kakumoto, controladora do grupo.
Também assina o contrato com a empresa de assessoria tributária o diretor estatutário Mario Gomes, preso desde a terça-feira (12) na Operação Ícaro.
Procurada, a Fast Shop informa que está analisando o conteúdo das investigações e segue colaborando com as autoridades competentes. O Valor apurou que os investigadores obtiveram outros acordos com a Smart Tax assinados pelos sócios, e ainda há busca de evidências envolvendo outros diretores do grupo.
“A análise de seu e-mail [de Silva Neto] comprovou que, de fato, Artur vem atuando em benefício da Fast Shop em conluio com inúmeros membros da alta cúpula da empresa”, segundo os promotores informam à Justiça em pedidos de busca e apreensão da operação.
Varejistas ouvidos pelo Valor temem os efeitos negativos das denúncias sobre todo o setor
Em apenas um ano, ao longo de 2023, a companhia pagou R$ 204 milhões para a Smart Tax (brutos, sem descontar impostos), negociados em 11 parcelas. Em dois meses consecutivos (fevereiro e março), em valores líquidos, foram quase R$ 20 milhões, segundo anexo em e-mails enviados em de 2023 pela coordenadoria da rede de varejo para a Smart Tax.
Demonstrações financeiras da Fast Shop de 2023 mostram o peso do contrato com a Smart Tax. A rede teve receita líquida de R$ 3,6 bilhões em 2023 e lucro de R$ 82 milhões, portanto, o gasto com supostas propinas para a Smart Tax no ano era mais de duas vezes o lucro do mesmo período.
De 2021 a 2022, o contrato da Fast Shop com a Smart Tax passou de R$ 36 milhões em 12 parcelas para os R$ 204 milhões, um aumento de quase seis vezes.
A Smart Tax é uma empresa de consultoria cuja sócia é a professora pública aposentada Kimio Silva, 72 anos, mãe de Artur Silva Neto, auditor e diretor do diretoria de fiscalização da Fazenda (Difis), e investigado por supostos atos de corrupção para acelerar a liberação de créditos de ICMS para empresas.
Há, inclusive, grupos de WhatsApp de Silva Neto com as empresas Ultrafarma e Fast Shop; nesta última, o grupo chamava-se “Fast Shop – Mitigação fiscal”.
Pelas apurações, até as vésperas do Natal do ano passado, em 16 de dezembro, Silva Neto tinha reunião de alinhamento já agendada de forma virtual com Gomes e a coordenadoria fiscal da Fast Shop. O fato seria indício de que as supostas práticas criminosas perduram até 2025, e embasaram o deferimento do pedido de busca e apreensão de empregados da Fast Shop e da Smart Tax.
No caso da rede de supermercados Oxxo, também investigada pela Promotoria, há e-mails entre a área de compliance, a área jurídica e de um advogado do Grupo Nós, controlador da empresa, datado de 19 de novembro de 2024, em que Agnaldo de Campos, suspeito de ser o “testa de ferro” de Silva Neto, envia as condições para fechamento de acordo com a Oxxo. Quatro pessoas do Grupo Nós estão adicionadas na mensagem.
Campos afirma no e-mail para a rede que o objetivo é “auxiliar o Grupo Nós/Oxxo na identificação, quantificação, lançamento e recuperação de créditos administrativos por meio de um processo técnico e detalhado de auditoria, garantindo o retorno financeiro mais eficiente para a empresa”.
Campos, da Smart Tax, se coloca à disposição para uma reunião para “alinhamento”.
Isso feito, cerca de três semanas depois, em 13 de dezembro de 2024, a Smart Tax envia um e-mail com o acordo de confidencialidade com o Grupo Nós/Oxxo na versão assinada para Silva Neto tomar conhecimento.
“[Silva Neto] também vem recebendo propina por parte de outras grandes empresas para beneficiá-las em questões tributárias, adotando o mesmo ‘modus operandi’ ora relatado. A título de exemplo, vale citar a Ultrafarma Allmix Distribuidora, Rede 28, Oxxo, entre outras”, informam os investigadores num pedido de busca.
Em relação à empresa de postos de combustíveis Rede 28, materiais levantados pelos investigadores mostra troca de mensagens entre o financeiro da companhia e as supostas assistentes de Silva Netto em dezembro de 2024.
Nas conversas, uma funcionária de uma assessoria contábil, até então não citada nas investigações, orienta, com o acompanhamento de Silva Neto, o que a Rede 28 deve fazer em relação aos documentos de arrecadação da Receita (DARFs).
A funcionária alerta Silva Neto para que a empresa de combustíveis realmente registre o ressarcimento de créditos de ICMS em seu fluxo apenas aquilo que for efetivamente liberado, e se programe para aquilo que não for compensado ainda.
Procurado, o Grupo Nós/Oxxo afirma que ainda não foi notificado sobre a investigação e esta à disposição para, se necessário, prestar esclarecimentos e colaborar nos termos da lei, e reafirma compromisso com a legalidade, ética e transparência. O Grupo Nós é uma joint venture entre a Raízen (Shell e Cosan) e a Femsa Comércio. O Valor entrou em contato com as demais empresas citadas, e elas não se manifestaram.
No processo em curso que levou Sidney Oliveira, fundador da Ultrafarma, e Mario Gomes, diretor da Fast Shop, à prisão nesta terça-feira (12), o MPSP alega que Silva Neto atuava “em todas as pontas” (da orientação à liberação) de valores a receber relativos a ressarcimentos de substituição tributária de ICMS.
Por meio da substituição tributária se cobra, de maneira concentrada, de um único CNPJ, todos os impostos de uma cadeia, e as companhias têm direito de receber de volta em créditos, em valores que vão se acumulando, mas isso leva anos ou meses. Uma das vantagens é que esse crédito pode ser vendido, com ganhos econômicos.
Quem acompanhava internamente todo esse processo era o diretor da Difis, Silva Neto, que tinha essa função, e portanto, estava a par das etapas dos pedidos das empresas de forma geral, pelas próprias características do cargo.
Existem informações de que a Smart Tax, com acompanhamento de Silva Neto e das assistentes, tentaria fechar contratos novos no mercado. Essas negociações abrem possibilidades de um aprofundamento nas investigações em curso, na equipe que conta com os promotores João Ricupero e Roberto Bodini, envolvendo outras empresas de varejo e serviços. As apurações ainda estão em curso, e a expectativa já tem gerado uma tensão maior no setor, segundo empresários ouvidos pelo Valor.
Em geral, empresários de varejo de alimentos e de bens duráveis ressaltam os efeitos negativos na imagem do segmento, meses após o escândalo contábil na Americanas, e temem que outras empresas de grande porte acabem envolvidas, o que poderia afetar os negócios e empregos gerados, já num ambiente de desaceleração da economia.