Casas de moda passaram por uma “dança das cadeiras” recentemente, com a troca de direções criativas. Pierpaolo Piccioli deixou a Valentino após 25 anos para assumir a Balenciaga, enquanto Virginie Viard saiu da direção criativa da Chanel, cargo que ocupava desde a morte de Karl Lagerfeld em 2019, a Dior trouxe Jonathan Anderson após a saída de Maria Grazia Chiuri e assim vai.
O que chama atenção não são apenas as mudanças em si, mas que a maioria desses cargos de prestígio continua sendo ocupada por homens, enquanto funções de menor poder decisório permanecem predominantemente femininas na indústria.
Apesar das mulheres dominarem numericamente a indústria da moda, representando 78% das pessoas formadas em escolas de moda e 73% dos empregados de lojas de vestuário, segundo levantamento da empresa Parity.org, há disparidade em posições de destaque.
O poder aquisitivo feminino contempla 70% das decisões de compra no setor, mostra o relatório “The State of Fashion 2023“, da McKinsey e Business of Fashion (BoF), que destaca que as mulheres são o principal motor do mercado de moda. O mercado feminino vale US$ 1 trilhão, contra US$ 400 bilhões do masculino —dados da plataforma alemã Statista, 2023—, uma diferença de 2,5 vezes.
Menos de 50% das marcas femininas conhecidas são assinadas por mulheres. Entre os 371 designers à frente das 313 marcas analisadas durante as quatro principais semanas de moda, apenas 40,2% eram do sexo feminino, segundo um estudo da BoF. Apenas 14% das grandes marcas tinham uma mulher no comando executivo, de acordo com uma pesquisa do BoF feita em 2017 com 50 das maiores grifes do setor.
Em “O Calibã e a Bruxa”, a teórica Silvia Federici argumenta que o surgimento do capitalismo está intrinsecamente ligado à repressão das mulheres e à reconfiguração do papel feminino na sociedade. Durante os séculos 16 e 17, a caça às bruxas funcionou como instrumento fundamental para esse processo de subordinação.
Segundo o livro de Federici, as mulheres perderam progressivamente sua autonomia econômica e acesso ao trabalho.
O sistema capitalista emergente as tornou dependentes dos homens, consolidando uma estrutura familiar hierárquica onde o homem assume o papel de chefe. Essa dinâmica não apenas subordinou as mulheres, mas foi central para a formação da nova ordem capitalista que conhecemos hoje.
A construção do que é conhecido como moda foi inicialmente dominada por homens —desde os alfaiates da corte até os industriais têxteis e o “pai da alta-costura”, Charles Frederick Worth. Essa realidade começou a mudar no início do século 20, com o surgimento de mulheres que fundaram suas próprias maisons de alta-costura, afirmam especialistas.
Durante a Primeira Guerra Mundial, a ausência de homens abriu espaço para mulheres liderarem maisons parisienses, embora muitas tenham sido posteriormente substituídas por homens. Chanel, Jeanne Lanvin, Elsa Schiaparelli e Madeleine Vionnet foram pioneiras ao aliarem arte, técnica e negócios.
Patricia Sant’Anna, diretora de visão estratégica e inovadora da Tendere, aponta que enquanto a atividade é vista como “hobby” ou de baixo prestígio, as mulheres conseguem dominar. “Quando esses negócios começam a se tornar lucrativos e ganhar relevância, os homens frequentemente assumem a liderança, excluindo as mulheres dos cargos de poder. Isso reflete uma dinâmica estrutural e cultural que dificulta a ascensão feminina, mesmo em setores inicialmente dominados por elas”.
“Contudo, o protagonismo na história da moda seguiu majoritariamente masculino, e, a partir da segunda metade do século 20, com o prêt-à-porter, muitos dos grandes nomes foram homens gays, falando a partir de um lugar de poder masculino, dentro de uma cultura masculinista”, afirma Brunno Almeida Maia, pesquisador em teoria da moda pela Universidade de São Paulo.
Apesar do “gap de oito anos” do levantamento da BoF, a recente reorganização nas casas de moda em 2024 e 2025 reflete esse cenário. Na Chanel, Matthieu Blazy assumiu em dezembro do ano passado, substituindo Virginie Viard, Jonathan Anderson entrou na Dior após a saída de Maria Grazia Chiuri.
Michael Rider substituiu Hedi Slimane na Celine. Outras nomeações incluem Haider Ackermann na Tom Ford, Glenn Martens na Maison Margiela, Duran Lantink na Jean Paul Gaultier e Peter Copping na Lanvin — todos homens.
Entre as mulheres, destacam-se Sarah Burton na Givenchy, Louise Trotter na Bottega Veneta e Veronica Leoni na Calvin Klein, todas nomeadas em 2024. Contudo, representam minoria nesse cenário de mudanças.
A presença de mulheres na direção criativa traz outras narrativas, que desafiam visões masculinas e eurocêntricas. O Prêmio LVMH para Jovens Designers exemplifica essa desigualdade persistente: em 2024, apenas uma das três vencedoras foi mulher, e em 2025, apenas duas das oito finalistas eram mulheres, conforme relatado no artigo “The Unnoticed Gap: Where Are The Female Creative Directors?”.
A falta de diversidade transcende questões de gênero. Designers não brancos são ainda mais raros em direções criativas, revelando camadas adicionais de exclusão que demandam análise específica, afirmam os especialistas. Essa sub-representação reflete não apenas questões de gênero, mas também estruturas raciais que permeiam a indústria.