Avalie essas duas informações separadamente:
Uma IA foi usada para alterar um vídeo e fazer as pessoas acreditarem em algo que jamais aconteceu;
Uma agência de publicidade brasileira criou uma campanha fantasma (ou seja, que nunca foi veiculada) para ser exibida em Cannes e foi premiada
Olhadas isoladamente, essas informações estão longe de ser uma novidade. Dia a dia, vemos mais e mais vídeos falsos criados por IA circulando pelas redes sociais. Diferenciar “fake” e a verdade já se tornou impossível.
Campanhas fantasmas para premiações também estão longe de ser uma novidade. O Brasil é notório pela prática há anos. Somos criticados por publicitários de todo o mundo por essa prática.
Então, por que o mercado está em choque com a notícia de que a organização do festival de criatividade Cannes Lions 2025 iniciou uma investigação sobre a manipulação de informações com uso de IA na campanha “Consumo Eficiente de Energia”, criada pela agência DM9 para a Consul?
A campanha da DM9 venceu o prêmio principal, um Grand Prix, na categoria “Creative Data” do festival, mas teria usado IA para alterar vozes e imagens de uma jornalista e de uma senadora americana.
Após a publicação do texto, a Consul entrou em contato com a coluna e informou que “a marca reforça que não compactua com o uso e a disseminação de informações falsas em nenhuma circunstância e está tomando as medidas cabíveis em relação ao caso.”
O problema da campanha da DM9 e Consul
O problema é que com o uso da IA, a DM9 não apenas criou uma peça fantasma, mas uma campanha de desinformação. Pior, os jurados não perceberam a manipulação. Se alguns dos maiores especialistas em vídeo e narrativa do mundo não conseguem identificar uma manipulação com IA, quem será capaz?
Em seu perfil no LinkedIn, Marcio Borges, VP executivo e diretor-geral da WMcCann no Rio de Janeiro, e que também é pesquisador do NetLab UFRJ e trabalha em uma tese de doutorado sobre o impacto da indústria publicitária na economia da desinformação, resumiu o problema que vai muito além da publicidade:
“Triste foi confirmar que a matéria realmente tinha sido adulterada e a palestra manipulada por IA para sustentar o argumento do caso inscrito no festival”
Percebam que eu não estou falando se a ação de marketing é ou não um “case fantasma” – criado unicamente para concorrer no festival – que há anos ronda todos os festivais e que coincidentemente sempre foi criticado pelo grande homenageado deste ano, Washington Olivetto.
A desinformação é o maior risco sistêmico para a sociedade globalmente. Não sou eu que afirmo isso, é o World Economic Forum, em 2024 e 2025. Ela acontece quando deliberadamente manipulamos ou adulteramos uma informação para influenciar a opinião pública e/ou obstruir a verdade (Massachusetts Institute of Technology) . Ela também é um meio para ganhos políticos ou financeiros, em ambos os casos induzindo ao engano. Pode ser aplicado em escala massiva ou em grupos para gerar dúvidas ou alterar decisões.
Usar técnicas e estratégias de desinformação para obter vantagens ou determinados resultados coloca em xeque a credibilidade do anunciante, da agência (detentora de uma trajetória notável e reputação de excelência), e a depender do desfecho, do próprio festival. A indústria da publicidade – atingida diretamente por esse fato – deve ser a primeira a zelar pela confiabilidade e confiança do mercado de comunicação, pois é ela que sustenta tanto sua integridade quanto sua degradação. E é exatamente isso que garantirá que o ecossistema da informação não se corrompa de vez diante de todas as transformações que estão ocorrendo”.
Uma liderança de agência com décadas de experiência em Cannes, e que pediu para não ser identificada por ser concorrente da DM9, comparou a premiação da Riviera Francesa a um desfile de moda em Paris.
“Aquelas roupas no lançamento de uma coleção são pouco ou nunca usadas no dia a dia. É – gostemos ou não – prática comum de agências e anunciantes, com pleno conhecimento dos jurados e da organização, inscreverem peças criativas para darem um show de criatividade que às vezes são pouco veiculadas ou são veiculadas só depois de premiadas no festival . Creio que estes cases representam 1/3 das inscrições”, diz.
Mas ainda segundo o executivo, a campanha da DM9 e Consul é diferente. “Com todo o respeito aos criativos desta belíssima agência (DM9), tem a questão da IA e a manipulação de imagens. Como a publicidade é pública, cada um julga. Mas agência e anunciante exageraram. Espero que seja pontual, embora tenha acontecido nesta ansiedade de conquistar prêmios, bem no ano em que nosso Brasil foi homenageado na figura do Washington Olivetto”, diz.
O CEO de uma agência é ainda mais direto. “É muito ruim para a publicidade brasileira, para todo o nosso setor um caráter de adulteração, de roubar no jogo usando IA. Uma coisa é usar IA para desenvolver, criar, ter ideia. Outra coisa é usar para adulterar conteúdo e transformar a realidade para ter case bacana. Não tem case nenhum ali, apenas mentira. É terrível”.
Quem revelou a manipulação?
Ironicamente, quem revelou a manipulação foi quem produziu um vídeo e distribuiu de maneira anônima para o mercado em grupos de WhatsApp no dia seguinte ao anúncio da premiação. Pela qualidade da produção, há boas chances de que o vídeo tenha sido feito por um concorrente.
Não fosse pelo vídeo, as vitórias da DM9 e da Consul teriam passado incólumes e não haveria investigação, porque provavelmente não haveria reportagem alguma sobre o tema. Jornalistas receberam o vídeo na manhã de quinta-feira (19), durante o feriado, dia seguinte ao anúncio do prêmio.
Os comunicados divulgados pela DM9 e Consul, quando questionadas sobre o caso, deixam a situação ainda pior. A Consul passa a responsabilidade para a DM9, dando aquela impressão de que, no sucesso, subimos juntos ao palco, e que no fracasso, a culpa é da agência.
A Consul esclareceu que “em relação à participação no Festival de Cannes, a responsabilidade sobre a inscrição de cases e premiações é exclusiva da DM9, agência responsável pela campanha. Qualquer abordagem relacionada à premiação está sendo conduzida diretamente pela própria agência”.
Já a DM9 não nega nem confirma a manipulação. A agência informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que um dos líderes da agência, o copresidente Icaro Doria, precisou se ausentar e ir a Portugal por conta de uma emergência médica de família na quarta-feira (18) e que a empresa “não conseguiu reunir o time que precisa estar nesse fórum ainda”. Segundo a assessoria, o executivo-chefe (CEO) da DM9, Pipo Calazans, que estava em Cannes, também está a caminho de Portugal para se encontrar com Doria.
“Seria mais simples, e transparente, apenas dizerem: erramos, vamos devolver o prêmio”, ouvi de um publicitário com diversos Leões na prateleira, e que parou de ir a Cannes há alguns anos porque avalia ser hipocrisia beber Rosé e dar risada na La Croisette enquanto demite pessoas de sua equipe.
“Cannes virou um evento de ‘big techs’. Cada vez mais vamos para bater palmas para quem engole nossos negócios”, diz outro publicitário.
A Meta, dona do Instagram e Facebook, revelou durante o festival uma série de novos produtos baseados em IA, concebidos para ajudar os anunciantes a criar anúncios da forma mais rápida e simples possível, eventualmente sem a necessidade de uma agência.
Mas diferentemente de Mark Zuckerberg, CEO da Meta, os executivos da companhia enfatizaram que as ferramentas não foram feitas para substituir as agências — apenas para acelerar o seu trabalho e apoiar as pequenas empresas que não podem arcar com esses serviços.
Google, LinkedIn e Snapchat também anunciaram novidades. A associação das agências americanas (4As) e a consultoria Forrester divulgaram um estudo na segunda-feira (16) afirmando que, embora 75 % das agências já utilizem a tecnologia de IA- ante 61% no ano passado —, o mesmo percentual de 75% arca diretamente com esses custos sem repassá-los aos clientes, proporção que era de 41 % em 2024. As agências investem bilhões em tecnologia, mas quem ganha são as “big techs”, donas dos grandes modelos de IA.
A publicidade cresce, as agências nem tanto
A verba de publicidade cresce no mundo e no Brasil, mas o mercado de agências vive o pior momento da história. Os ventos contrários são claros: atenção do consumidor cada vez mais fragmentada, o fim iminente dos cookies, “ad fraud” em alta, pressão por sustentabilidade, crise de confiança em “brand-safety”, uso (e abuso) da IA generativa, a concorrência das “big techs” e uma escassez crônica de talentos.
Nenhum desses desafios é novo isoladamente, mas a sua convergência — num ambiente em que 73% do investimento global já é digital — força agências, plataformas e anunciantes a repensar métricas, governança e modelos de negócio.
Mas neste contexto o maior risco para o mercado não é o fato de Mark Zuckerberg dizer que irá tornar as agências “dispensáveis” para os clientes até 2026 usando IA, ou ao fato de gigantes do setor estarem cortando custos, pessoas e encerrando marcas históricas porque os negócios estão cada vez mais concentrados no Google e na Meta.
“O maior risco para as agências é perder a credibilidade que as trouxe até aqui. Um problema que não se limita ao mercado de publicidade, e é muito maior”
O que vimos nesta campanha manipulada também está acontecendo no jornalismo, na produção científica, em campanhas eleitorais e em todos os setores da economia. Um futuro sem regras para a IA, como desejam as “big techs”, é um perigo tremendo.
Ferramentas de vídeo e voz clonada permitem fabricar declarações de políticos, CEOs ou familiares com um clique, abaixando o custo de golpes financeiros e manipulação eleitoral. A facilidade de acesso a esses “fakes” produz o “dividendo do mentiroso”: culpados contestam provas reais alegando serem montagens.
Quando não existem regras e prevalece o vale-tudo, a vantagem é daqueles que têm menos ética.