Veículo: Estadão - Online
Clique aqui para ler a notícia na fonte
Região:
Estado:
Alcance:

Data: 22/09/2024

Editoria: Sem categoria
Assuntos:

Casas Bahia, Tok&Stok, InterCement: por que as recuperações extrajudiciais dispararam no Brasil

Com uma dívida de R$ 22 bilhões, a InterCement se juntou a um grupo de 31 empresas que buscaram o caminho da recuperação extrajudicial (RE) para reorganizar seus passivos. A terceira maior fabricante de cimento do País tem de longe a maior dívida que será reestruturada por meio de um acordo feito com os credores e homologado na Justiça. Mas está ao lado de outras empresas relevantes como Casas Bahia, com passivo de R$ 4 bilhões; Araguaia Níquel Metais, com R$ 2 bilhões; e Tok&Stok, R$ 402 milhões.

PUBLICIDADE

O valor total dos pedidos de recuperação extrajudicial que chegaram à Justiça este ano soma R$ 31 bilhões, mais de 300% acima do total de 2023. Esse é o maior volume de renegociações feitas por meio da modalidade, que tem ganhado a preferência das companhias por evitar o ônus do processo de recuperação judicial (RJ), que se arrasta por anos na Justiça, é custoso, prejudica a imagem da empresa e depende, em todo o seu percurso, do aval de um juiz.

“De cada cinco pedidos de reestruturação que chegam à Justiça por grandes empresas, um é da modalidade extrajudicial”, diz a advogada Juliana Biolchi, coordenadora do Observatório Brasileiro de Recuperação Extrajudicial (Obre), núcleo de pesquisa que busca reunir informações e dados sobre a utilização da recuperação extrajudicial no País.

Para ela, o crescimento reflete a sofisticação e a flexibilidade oferecida pelo instrumento, uma vez que as negociações são feitas diretamente entre devedores e credores. O Judiciário entra no processo somente para chancelar o acordo.

O aumento das recuperações extrajudiciais é reflexo de um cenário ainda apertado, com o juro básico da economia em 10,75% ao ano e em ciclo de alta nos próximos meses. De janeiro de 2021 a agosto de 2023, a Selic subiu de 2% para 13,75%, pegando muitas empresas endividadas no contrapé. Em setembro de 2023, o Banco Central iniciou um processo de afrouxamento monetário até chegar a 10,5% em maio deste ano. Na última reunião do Copom, na semana passada, os diretores do BC decidiram retomar o processo de alta dos juros, que deve se manter até, pelo menos, janeiro de 2025.

O executivo Ricardo Knoepfelmacher, conhecido como Ricardo K., especialista em reestruturação de empresas em dificuldades financeiras, afirma que hoje 30% das 400 maiores empresas do País não têm condições de pagar suas dívidas como foram pactuadas inicialmente. “Esse é um momento em que muitos bancos estão tendo de fazer reestruturações bilaterais para evitar que as empresas entrem em recuperação judicial e eles sejam obrigados a provisionar o que não tem garantia real ou extraconcursal, como alienação fiduciária”, diz o especialista.

A procura das empresas pela recuperação extrajudicial se deve à reforma da lei de recuperação judicial e falências, feita em 2020 e que entrou em vigor em 2021. Juliana Biolchi diz que as mudanças tornaram essa abordagem mais eficiente e simplificou procedimentos, como a diminuição do número de credores necessários para aprovar o plano. Tanto que de lá para cá, o número de novos pedidos dobrou. No ano passado, o crescimento já havia sido de 115%, segundo o Obre.

Antes da mudança regulatória, qualquer processo extrajudicial precisava de aprovação dos credores com 60% do valor da dívida para ser aprovado. A nova regra baixou a necessidade de aprovação para qualquer valor acima dos 50% dos créditos.

Além disso, autorizou as empresas a darem entrada no processo de RE com apenas 33% garantidos. A partir desse momento, elas passam a ter 90 dias para atingir a maioria simples dos créditos. Uma vez que consigam isso, o restante dos credores são incluídos no processo.

Uma diferença entre RJ e RE é que a primeira exige, além da aprovação por valor de crédito, também em número de credores. Ou seja, na RE, se a empresa conseguir aprovação dos credores donos de mais da metade dos créditos, o processo passa a valer. Ela não precisa também conseguir a aprovação de mais da metade do número de credores.

Dessa forma, segundo especialistas no processo, a RE acaba servindo principalmente para empresas que têm as suas dívidas concentradas em menos credores, o que facilita a negociação entre os dois lados. Se a situação for de créditos muito dispersos, o processo é dificultado.

“A recuperação extrajudicial tem ganhado destaque por ser útil para solucionar crises de empresas cujo endividamento ainda está limitado às dívidas financeiras. Ou seja, não afetou a operação, pagamento de fornecedores e o atendimento dos consumidores”, diz o advogado Eduardo Munhoz, um dos maiores especialistas em recuperação judicial do Brasil.

Segundo ele, são empresas que, em geral, são viáveis e saudáveis, mas têm problema de estrutura de capital. “O mercado como um todo, incluindo bancos, debenturistas e bondholders, aprendeu a lidar com a RE, preferindo esse instrumento à Recuperação Judicial.”

Giuliano Colombo, sócio da área de reestruturação do escritório Pinheiro Neto Advogados, corrobora a opinião de Munhoz. Segundo ele, houve uma mudança de mentalidade, com um maior entendimento das ferramentas disponíveis para a recuperação das empresas, e também das dinâmicas de negociação. “Assim, os credores passaram a ser mais proativos na procura de soluções que evitem aquelas RJs mais sangrentas que levam muito tempo.”

Segundo ele, a tendência percebida nos últimos tempos, e a que deve se estabelecer no mercado, é de as empresas tentando evitar uma RJ a todo custo. A primeira alternativa para elas, se houver tempo, é buscar um acordo privado, conhecido pela expressão em inglês “liability management”, que pode ser traduzido como administração de passivos.

Se não houver um consenso, elas podem passar para a RE e buscar uma aprovação da maioria dos credores, para “arrastar o restante” para o acordo. Por fim, então, se nada disso der certo, rumar para a “inevitável” RJ.

Entre os problemas percebidos nos últimos tempos com as RJs, estão os altos custos do processo, uma vez que envolvem a remuneração de um administrador judicial, o que pode chegar a até 5% do valor da dívida. Além disso, é preciso montar uma assembleia de credores.

Toda a aprovação é feita por meio de decisões de um juiz, e as discussões acabam se estendendo. Por esse período, a empresa enfrenta grandes dificuldades operacionais e de acesso a crédito.

Para grande parte dos especialistas, o modelo de RJ em si não é problemático, mas sim o fato de que as empresas costumam aderir a ele apenas como o último recurso. Normalmente, elas entram no processo quando já correm risco de falência, estão com os seus melhores ativos já comprometidos e perderam mercado. Tudo isso dificulta muito uma recuperação.

“A RJ é um instrumento muito poderoso, e muito bom, mas se o paciente vai para UTI muito tarde, a eficácia do tratamento vai diminuindo. Fica mais difícil, e o instituto da RJ acaba levando a fama”, diz Colombo. Com isso, quando as empresas aderem a RJ, costumam ficar marcadas como se estivessem numa espécie de antessala para a falência.

A RE, por outro lado, não carrega esta má fama, o que é uma de suas vantagens. Mas existem outros benefícios, além também dos menores custos. “Ela é muito mais rápida. A gente faz um acordo, e daí a RE já nasce pronta. É a preferida de quem está envolvido nesses casos. É muito mais leve e efetiva”, afirma o sócio-diretor da consultoria Alvarez & Marsal, especializada na recuperação de empresas, Eduardo Gallardo. “Sempre brinco com os clientes que o problema da RE é que o nome dela é muito parecida com o da RJ. Mas são ferramentas muito distintas”