Descobrir que está com câncer de mama é uma notícia difícil para qualquer pessoa. Ainda assim, o impacto da doença varia bastante conforme a classe social da brasileira. É o que mostra um levantamento conduzido pelo Instituto IDEIA com mais de 2000 entrevistadas em todo o país, além de entrevistas qualitativas com pacientes e familiares. O recorte por classe social revela diferenças na jornada de cuidado, no trabalho, na autoimagem e nas relações pessoais.
“Enquanto a classe A e B tem uma relativa segurança, com plano de saúde e todo tipo de apoio, a classe C, D e E enfrenta incertezas extremas, como redução drástica de renda e privações bem básicas”, aponta Cila Shulman, CEO do Instituto IDEIA. “A questão financeira é determinante quanto a viver e morrer.” A pesquisa foi encomendada pela ONG Américas Amigas em parceria com a AstraZeneca. Os dados foram coletados em setembro de 2024 e divulgados agora.
O recorte por classe mostra desigualdades no acesso. Enquanto quase metade (48%) das mulheres de classe A/B se tratou pelo plano de saúde, nas classes C e D/E a imensa maioria dependeu do SUS, com 84% e 94%, respectivamente.
Quando se observa o tempo até o início do tratamento, os percentuais parecem semelhantes à primeira vista. Os dados mostram que 46% das mulheres em todas as classes começaram em até dois meses após o diagnóstico, e 45% entre dois e seis meses. Mas os atrasos mais longos se concentram nas classes mais baixas: 8% das mulheres da classe C e 10% das D/E só iniciaram o entre seis meses e um ano, ante 3% na classe A/B.
Afastamento, demissão e preconceito no trabalho
O levantamento mostra que o câncer de mama tem efeitos profundos sobre a trajetória profissional das mulheres, e eles variam conforme a classe social. Entre as pacientes que precisaram parar de trabalhar durante o tratamento, 56% daquelas das classes D/E não conseguiram retornar ao mercado, escancarando a fragilidade de ocupações informais ou sem proteção trabalhista. Entre aquelas de classes A/B, por outro lado, quase metade (48%) conseguiu retomar as atividades após uma pausa, enquanto 24% não conseguiram.
Outro dado chama atenção: 10% das entrevistadas de classes A/B que se afastaram das atividades decidiram não voltar ao mercado, índice muito acima do encontrado nas classes mais baixas (1% na classe C e 4% na D/E). Isso sugere que a segurança financeira influencia não apenas a possibilidade de retorno, mas também a decisão de interromper a carreira. Há ainda um grupo pequeno que relata ter sido dispensado após retornar de licença médica: 4% daquelas da classe C.
No quesito discriminação, a percepção é semelhante entre todos os degraus da pirâmide econômica: cerca de 12% relataram preconceito no ambiente de trabalho. “O empregador e o setor de RH muitas vezes não estão preparados para fazer as adaptações necessárias. Se a pessoa não está 100%, está fora. E isso tem um impacto negativo muito grande para essa paciente. O mais comum é a pessoa voltar ao trabalho e não ter a valorização de antes”, lamenta Solange Sanches, oncologista clínica do Centro de Referência de Tumores da Mama do AC Camargo Câncer Center.
A falta de apoio de colegas do trabalho também tem contrastes sociais: 18% das mulheres da classe D/E disseram não ter recebido nenhum, ante 4% na classe A/B. Shulman lembra que, para aquelas de baixa renda, a ausência de rede formal pesa ainda mais. “Se a gente for pensar em uma diarista, que está no campo da informalidade, como ela faz esse tratamento? É muito diferente de uma mulher que tem uma empresa por trás que vai bancá-la no processo”, afirma.
Custos invisíveis que pesam mais nas classes baixas
Mesmo quando o tratamento formal está garantido, as despesas paralelas aumentam a pressão financeira. Entre os exemplos frequentes estão medicações de suporte não cobertas pelo SUS ou pelos convênios, como remédios para enjoo, protetores gástricos, analgésicos, enxaguantes bucais e suplementos alimentares.
Outro peso é a locomoção até o hospital. Sanches lembra que, durante a quimioterapia, muitas pacientes não podem usar transporte público em horários de maior lotação, por risco de infecção ou por desgaste físico. Se têm carro, não conseguem dirigir após a aplicação, o que obriga a presença de um acompanhante, alguém que, nesse dia, também deixa de trabalhar.
Mães de crianças pequenas podem precisar pagar alguém para olhar seus filhos ou buscá-los na escola. Para as mais pobres, isso significa abrir mão de parte do pouco que têm para garantir o mínimo de funcionamento da rotina. “Algumas mulheres não conseguem manter o tratamento, mesmo com convênio”, diz a oncologista.
A pesquisa mostra que as entrevistadas de classes D/E são as que mais relatam ter precisado comprar alguns medicamentos por conta própria (17%, ante 10% nas classes A/B). Já entre as de maior renda, aparece com mais força o acesso a remédios via plano de saúde (31%), algo inexistente para as classes mais baixas (0% na classe D/E).
“Apesar do diagnóstico ser um choque igual para todo mundo, tem esse gap caótico entre as classes sociais, porque tem muita burocracia e muita falta de informação especialmente nas classes C, D e E”, afirma Shulman.