Paisagens exterminadas reaparecem como reconstruções digitais, narradas por relatos de seus antigos habitantes. Esses cenários recriados pelo coletivo britânico Forensic Architecture mais parecem assombrações de espaços que testemunharam um passado colérico. É o caso do antigo reino do Benim, que ficava em florestas no sul da atual Nigéria antes de ser destruído pelos britânicos no final do século 19.
O vídeo “The People’s Court” ressuscita vegetações e comunidades do ocidente da África para mostrar como a exploração de recursos naturais pelos colonizadores europeus foi, na realidade, um presságio do colapso climático. A obra dá uma prova do gosto meio amargo, porém idealista, da 36ª Bienal de São Paulo, composta em grande parte por trabalhos que partem da relação de diferentes comunidades com a natureza para imaginar futuros melhores.
A preocupação ambiental se manifesta na própria montagem desta edição, que simula um estuário, o lugar onde as águas dos rios se encontram antes de desembocar no mar. É como se o edifício da mostra representasse essa bacia de transição e cada instalação fosse um afluente. As obras foram separadas, ainda, por enormes cortinas coloridas e sinuosas.
A mostra de arte contemporânea mais importante do país aprofunda o legado de sua edição antecessora, que, há dois anos, pela primeira vez na história, teve predominância de artistas não brancos ocupando as paredes dos pavilhões no parque Ibirapuera.
Desta vez, a maioria dos participantes são africanos, latino-americanos ou asiáticos, e grande parte deles são da diáspora, ou seja, não vivem em seus países de origem —mas refletem sobre as práticas de seus ancestrais nesses territórios. Daí vem o título da mostra, “Nem Todo Viandante Anda Estradas”. “O mais interessante é ver práticas artísticas diferentes. Os velhos posicionamentos sobre quais os centros do mundo não servem mais”, diz Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, curador geral desta edição e diretor da Haus der Kulturen der Welt, centro cultural em Berlim.
Exemplo disso é Adama Delphine Fawundu, que nasceu e cresceu em Nova York, nos Estados Unidos, mas é descendente de povos da Serra Leoa e da Guiné Equatorial. Poucos dias antes da abertura da mostra, sentada no chão do último andar do pavilhão, ela costurava uma enorme colcha de retalhos formada por tecidos e plásticos encontrados nas ruas de Serra Leoa. A essa colagem se somam, ainda, fotos e amuletos que recebeu de pessoas na comunidade de sua família.
“Esses materiais carregam diferentes identidades com propósitos semelhantes de cura”, diz Fawundu. “O que significa reunir pessoas para meditarem juntas sobre onde estamos? Ainda mais hoje, com a crise climática”, ela diz.
O reúso de materiais descartados com simbologias específicas, aliás, é uma prática recorrente nos trabalhos desta exposição. É o caso de “Tempestade em Copo d’Água”, do brasileiro Antonio Társis, uma instalação de cortinas feitas com caixinhas de fósforo que se esfarelam aos poucos.
A ideia é pensar a produção do fósforo, que parte da extração de madeira e minerais para prover o fogo, uma das primeiras interações entre humano e natureza e, ao mesmo tempo, elemento básico para a sobrevivência. As caixinhas coloridas, típicas brasileiras, muitas vezes são descartadas no ambiente no fim dessa cadeia, e Társis queria explorar a transformação da matéria.
“Um material que está há bilhões de anos na terra é extraído e utilizado para construir tecnologias. Mas quem vem decidindo os avanços tecnológicos hoje em dia?”, questiona o artista.
Na mesma toada está a obra de Ana Raylander Mártis dos Anjos, com troncos que penetram todos os andares do pavilhão, encapados por roupas doadas. As colunas, algumas com ligas metálicas, replicam os alicerces da casa de seu avô, construída numa área de Minas Gerais disputada por mineradoras.
Ou, ainda, o trabalho do jamaicano Nari Ward, que acumula objetos como molas de colchão e grãos de café, quase como um arqueólogo do cotidiano, para criticar a cultura do consumo, parecido com o vietnamita Truong Công Tùng, criador de engenhocas elétricas feitas de objetos velhos.
O chinês Song Dong, nome quente no cenário internacional, fez uma sala inteira espelhada repleta de abajures e luminárias para falar sobre a efemeridade de um mundo em rápida transformação, enquanto a brasileira Gê Viana fez uma parede de radiolas, ainda usadas no Maranhão para festas de reggae.
Outros artistas, ainda, usaram a própria terra, entre outros elementos naturais de seus territórios. É o caso da neozelandesa Raukura Turei, que conta a história de quatro divindades femininas em telas enormes e abstratas, feitas com areia e argila de sua aldeia. “Cada um dos painéis carrega os diferentes pigmentos da terra, conectados às suas genealogias, para contar histórias femininas suprimidas pela colonização”, ela diz.
Também não faltam obras figurativas na mostra. Gervane de Paula apresenta esculturas que denunciam a presença do agronegócio no Mato Grosso, por exemplo. Já o poeta japonês Gōzō Yoshimasu escreve em pergaminhos para transcrever visualmente a catástrofe nuclear de Tohoku, no Japão, em 2011.
As tapeçarias monumentais da nigeriana Otobong Nkanga, com tema marítimo, mostram redes, plásticos, animais e membros do corpo humano no fundo do mar, e a brasileira Nádia Taquary fez esculturas em bronze de mulheres-pássaro que saúdam uma árvore que, segundo religiões de matriz africana, foi a primeira plantada.
Mesmo com a preocupação latente em relação ao ambiente, os artistas desta mostra parecem renunciar ao pessimismo. Preferem sonhar com outras paisagens possíveis, sem tanto concreto e máquinas que rodeiam os limites do mesmo parque Ibirapuera em que agora expõem seus trabalhos.