“Vamos falar um pouco de inglês, de italiano e umas palavras em português. Um mix de tudo. A gente vai se entender”, diz Marco Falcioni, diretor criativo da Hugo Boss, logo que encontra a reportagem. Estamos numa sala privativa do restaurante Taraz, no hotel Rosewood, na Cidade Matarazzo, o lugar escolhido pelo time brasileiro da marca para este “À Mesa com o Valor”.
Italiano de Roma, como gosta de frisar, Falcioni é um entusiasta de São Paulo, que considera uma das cidades mais pulsantes do Brasil e onde já esteve várias vezes. É a razão pela qual desta vez veio acompanhado por todo o grupo de estilistas, 10 no total, em busca de inspiração para a próxima coleção primavera-verão da grife.
A Hugo Boss, marca centenária alemã, é conhecida especialmente por sua alfaiataria tradicional, na qual se destacam sobretudos e ternos muito bem cortados. Atualmente, tem duas etiquetas: Boss, a mais clássica e mais conhecida, e Hugo, a mais nova, mais ousada e voltada para um público mais jovem.
Com barba longa, boné preto, brinco na orelha e colares, Falcioni, de 45 anos, é uma expressão da Hugo. Ele está de jeans black, camisa estampada em tons de ferrugem e preto, e tênis cinza claro. Mesmo em situações mais formais, quando usa terno, ele dá um jeito de evidenciar seu estilo descontraído, seja com camiseta de estampa aplicada, seja com um certo tipo de sapato.
Ele mostra, entre o conjunto de colares que traz no peito, um escapulário de madrepérola que usa todos os dias e guarda dentro da camisa. A peça foi comprada em Trancoso, no sul da Bahia, o local que melhor conhece no Brasil. No seu calendário anual sempre estão reservados alguns dias de férias no vilarejo baiano, onde é hóspede de seu amigo Wilbert Das, dono do Uxua Casa Hotel & Spa, com quem trabalhou durante 11 anos na marca italiana Diesel.
Nessa época, início dos anos 2000, eles viviam em Milão, e o holandês Das, o diretor criativo da Diesel, era seu chefe. Os dois saíram de lá, mas a amizade perdura até hoje. Todos os anos, quando vai a Trancoso, Falcioni se desconecta. Aproveita o mar, o sol e o “dolce far niente” que a Bahia propicia tão bem.
O princípio de que algo é para sempre na moda é difícil. Há poucas coisas que são para toda a vida.”
— Marco Falcioni
Na volta, procura sempre passar uns dias na capital paulista. “São Paulo é outra história: é arte, arquitetura. Aqui há uma arquitetura modernista, minimalista e pós-modernista. Vocês conseguiram melhorar a arquitetura europeia, ir além da Bauhaus”, diz ele ao se referir à escola de vanguarda alemã da primeira metade do século XX, que marcou a história da arte, do design e da arquitetura.
“O modernismo tropical é sobre curvas, é mais exuberante, usa outros materiais. Essa é a diferença entre Mies van der Rohe e Oscar Niemeyer”, continua, ao comparar dois gigantes da arquitetura: o alemão da Bauhaus, um dos papas do modernismo, e o carioca que projetou a arquitetura brasileira no mundo. “No Brasil, você tem o verde, o poder da natureza, que às vezes é tão poderosa, que chega a ser agressiva. Na Europa não temos isso.”
O Brasil também o fascina pelo artesanato e pelos materiais: madeira, pedra, cerâmica. E tem as cores. “Quando você chega da Europa percebe a grande diferença que há na luz.” Ele faz as contas com os dedos. Um, três, cinco… e termina no 13. “Já estive no Brasil 13 vezes. A primeira foi em São Paulo, em 2004.”
Daquela vez, ficou hospedado no Hotel Emiliano, na rua Oscar Freire, nos Jardins, e achava muito curioso observar como eram os brasileiros “jovens, brancos, de classe média” que caminhavam pela rua. “Era muito diferente de hoje. A globalização não tinha chegado com tanta força. Era o início do Facebook, me lembro do Orkut, das conversas no Messenger. O mundo era outro.”
“Eu não fazia ‘shopping’. Ia ao Masp, a Higienópolis, ao Sesc Pompeia, à Casa de Vidro”, continua. “Lina Bo Bardi. Uau!”, exclama, e faz uma rápida pausa. “A Lina Bo Bardi [1914-1992] é muito importante. É uma das poucas arquitetas femininas que tem tanta relevância.”
Falcioni pega o celular e salta dos anos 60 e 70 para a atualidade. “Quer ver de quem eu gosto muito? Dela, a Erika Verzutti”, diz, enquanto mostra fotos das esculturas da artista paulistana de 54 anos que estão no Instagram. “Ela tem uma estética muito inspirada pela natureza, e a maneira como junta os materiais é incrível.”
A Hugo Boss na qual Falcioni ingressou há dez anos tinha pouco a ver com a fábrica de uniformes fundada em 1924 pelo empresário Hugo Ferdinand Boss (1885-1948), na cidade alemã de Metzingen. Envolvido com a política do Terceiro Reich, Boss foi filiado ao Partido Nacional-Socialista e prosperou produzindo uniformes para os oficiais nazistas. No fim da Segunda Guerra, perdeu direitos políticos e de cidadão, mas sua empresa sobreviveu, cresceu muito e hoje pertence a um grupo de acionistas.
O Grupo Hugo Boss fez uma retratação e um pedido de desculpas, em agosto de 2011, por intermédio do livro “Hugo Boss, 1924-1945 – A história de uma fábrica de vestuário entre a República de Weimar e o Terceiro Reich”. Ali está um estudo feito pelo historiador Roman Koester, da Universidade de Bundeswehr, em Munique, que conta que a fábrica utilizava 140 trabalhadores forçados, a maioria mulheres, e 40 prisioneiros de guerra franceses para produzir as camisas marrons para o Partido Nazista.
A sede do grupo continua a ser em Metzingen, e hoje ele está presente em 129 países, tem mais de 8 mil pontos de venda e mais de 18.500 funcionários pelo mundo. As vendas no ano fiscal de 2024 somaram € 4,3 bilhões, nos quais está incluído o comércio online disponível em mais de 74 países. O Brasil conta com 52 lojas (43 Boss e 9 Hugo) em vários estados. Nelas há roupas masculinas, femininas e infantis, perfumes, óculos, relógios, sapatos e bolsas.
“Eu faço uma grande diferenciação entre a empresa e o senhor Hugo Boss, que a criou há cem anos. Agora somos inclusivos, temos apenas em Metzingen 27 nacionalidades diferentes, se não me engano. Temos homens, mulheres e pessoas da comunidade LGBTQIA+.”
Falcioni vive entre a Alemanha e a Itália, principalmente Milão, onde a marca tem uma base. E viaja, viaja, viaja muito. “Gosto. Acabei de voltar de Xangai. Em seguida vou para Oaxaca, no México. Com os olhos você vê o que é único, o que só vemos quando estamos presentes, o que não é feito por uma máquina. Todo mundo pode ver o Instagram e o Pinterest.”
Ao se referir à era da inteligência artificial, da tecnologia, do excesso de conectividade, ele diz apostar na volta para o artesanal e que essa é a tendência que virá a seguir. “Olha para este prato”, diz, enquanto levanta e move o prato de cerâmica que está na mesa diante dele. “Veja as irregularidades, as manchas no pigmento e tudo o que faz dele um objeto único.”
Ele está acompanhado pela diretora de marketing da grife no Brasil, Larissa Lanzo, e na hora de escolher o que comer, ela lhe explica alguns ingredientes intraduzíveis como tucupi. Decidimos seguir as sugestões da garçonete, e ele diz estar aberto a qualquer possibilidade do menu. “É tudo novo para mim e adoro experimentar o que não conheço.” Mas, em vez de escolher um prato principal, lhe agrada a ideia de compartilharmos várias entradas no centro da mesa.
O primeiro prato a chegar é o ceviche clássico feito com robalo, tucupi, cebola roxa, milho crocante, coentro, que acompanha chips de batata-doce. O Taraz é um restaurante do chef carioca Felipe Bronze e, como tudo o que ele faz, tem uma leitura contemporânea de ingredientes brasileiros. O clima é despojado: mesas de madeira sem toalha, pratos de cerâmica, ambiente acolhedor.
A segunda entrada é um sanduíche de pão de queijo com costela na brasa, uma espécie de miniburguer diferente. Ao ver o prato, os olhos de Falcioni se iluminam. “Sou louco por pão de queijo e aprendi a fazer”, ri, ao mostrar uma foto dele batendo a massa em Trancoso ao lado da cozinheira da casa de Wilbert Das. “Ela me falou: se prepara, porque vou fazer uma quantidade muito grande para congelar. Você é forte? Não pensei que precisasse de tanta força para misturar aquela massa.”
Os dois se divertiram durante o preparo, e ele comenta que, como estudou latim, tem facilidade para se comunicar com brasileiros e espanhóis. Na escola secundária, seguiu o curso de ciências porque os pais queriam que fizesse carreira como engenheiro, dentista ou médico. Chegou a pensar em seguir veterinária porque adora animais.
Mas não era a dele. Aos 19 anos virou a mesa e decidiu que faria moda. “Minha mãe e meu pai perguntaram se eu estava louco!” Então, começou a trabalhar e conseguiu uma bolsa para cursar o Instituto Italiano de Moda, em Roma.
A entrada de Falcioni na Hugo Boss se deu, de alguma forma, porque a marca buscava um ponto de vista diferente. “Nós precisamos falar com a nova geração, que não é exatamente consumidora da Boss.” Ele diz que vai sempre ao arquivo que reúne 50 anos de história da marca. “É uma viagem para mim. Há ternos e roupas lindas. Me disseram que nenhum outro diretor criativo ia lá. Eu levo meu time a cada seis meses e pesquiso. Porque os jovens de agora não sabem como era a roupa dos anos 80 do século XX.”
“É uma viagem para mim. Há ternos e roupas lindas. Me disseram que nenhum outro diretor criativo ia lá. Eu levo meu time a cada seis meses e pesquiso. Porque os jovens de agora não sabem como era a roupa dos anos 80 do século XX.”
A busca constante por novos materiais é uma das características de sua atividade. “Nós trabalhamos muito com as fábricas, com os italianos em especial, com a nova tecnologia. Se antes a nova tecnologia ia para os acrílicos, poliéster, agora vai para os materiais naturais. É muito legal esse momento em que voltamos a ter materiais naturais muito bons, mas com tecnologia e performance.”
A moda pós-covid, que entrou inicialmente numa pegada “comfy” (confortável como a roupa de ficar em casa), agora vai em outra direção, acredita. “Na covid todos cozinhamos, ganhamos um pouco de peso, mas agora as pessoas estão de novo na rua e querem um bom vestido, uma boa camisa, um belo terno. Não podemos esquecer que a moda é muito social. No caso dos homens acho que haverá um grande retorno da gravata. Quem sabe até dos suspensórios. Além disso, o conceito de feio e bonito na moda é sempre relativo.”
A Hugo Boss é mais forte no universo masculino do que feminino. E ele diz gostar de mulheres poderosas como Naomi Campbell e Gisele Bündchen em suas campanhas. “Nós as chamamos de ‘Mulheres Boss’. Elas são fortes. Às vezes penso que, talvez, há 50 anos, Lina Bo Bardi poderia ter sido uma ‘Mulher Boss’. Uma mulher que nos anos 1960 estava construindo o maior museu de São Paulo.”
Assim, ele explica uma característica da marca, que é a ligação com a arte. “Financiamos o Guggenheim em Nova York durante décadas, e agora o Art Basel Awards. Outra inspiração é o esporte: golfe, tênis, Fórmula 1. Esses dois extremos são sempre fonte de inspiração.”
O cinema também entrou na história da empresa com o patrocínio da Aston Martin, conhecida por produzir o carro de James Bond. “Meu escritório está cheio de fotos antigas em branco e preto de James Bond, quando o ator era Sean Connery”, diz. “Ah”, lembra em seguida, “sabe aquela imagem famosa de Sylvester Stallone, fazendo Rocky Balboa, vestindo um smoking? É Hugo Boss.”
Ao comparar seu passado na Diesel e a atividade atual, Falcioni explica o quanto as empresas são diferentes. Não apenas pelo estilo, porque Diesel é jeans, mas sobretudo por ser uma empresa italiana, com outro perfil de organização. “Agora estou numa empresa alemã, é outra cultura, é tudo muito organizado.”
Os pratos se sucedem, e ele vai comentando todos. “Boa comida pra mim é uma coisa que só precisa de bons ingredientes: o melhor peixe, a melhor fruta, o melhor azeite, sabe? É um pouco como a alfaiataria. Se você tem um bom tecido, 50% está feito, mas, se o tecido não for bom, você pode fazer um corte impecável e a roupa nunca será boa.”
Quando fala do etarismo e da busca da eterna juventude, afirma que acha normal as pessoas mais velhas olharem para as jovens. “Eu tenho 45 anos, mas sinto como se fossem 25 por dentro. Então, olho para os jovens porque eles não têm filtros. Eles veem coisas que eu não vejo mais. Por isso é normal as pessoas mais velhas olharem para os jovens. E os jovens olham para as coisas velhas, não para as pessoas, mas para as coisas.”
Falcioni é reticente sobre o impacto dos influenciadores no seu setor. “Sempre que falamos de influenciador, eu prefiro falar de celebridade esportiva. Porque, você sabe, todos trabalham duro, e acho que esse é um bom modelo para a nova geração.” Entre os brasileiros, ele cita o corredor Paulo André e o surfista Pedro Scooby.
Também mantém a reserva em temas políticos. “Eu não ignoro, sigo, acompanho, mas prefiro falar de moda e deixar as duas coisas bem separadas.” Mas de comida, gosta de falar. Adora a cozinha brasileira, japonesa, peruana, argentina. Na comida asiática, vai do Vietnã à China. Já da comida alemã não pode dizer o mesmo. Definitivamente, não morre de amores.
“Gosto de cozinhar, sou romano. Faço carbonara, matriciana, cacio e pepe. Eu amo. A pasta alla carbonara tem que ser simples, o segredo é a simplicidade.” E dá sua receita, que calcula dois ovos por pessoa, bochecha de porco em vez de bacon e pimenta-do-reino socada na hora. “Tem que ser esmagada com o pilão, não pode ser moída com o moinho”, avisa.
Falcioni ainda está no jet lag. Chegou à cidade na véspera, no fim da tarde, e seguirá um roteiro estrito para conseguir mostrar à sua equipe tudo o que acha importante. “A gente saiu para dar uma caminhada perto do hotel, na Paulista, e eles só falavam: ‘Uau! Uau! Uau!’”
Durante a viagem, com alguns dias no Rio, pretende descobrir pequenas marcas de moda brasileiras. Ao se despedir, diz que acrescentará o Taraz à sua agenda de restaurantes paulistanos, onde já figuram o Bananeira, a Casa do Porco e vários japoneses.