Veículo: Folha de S.Paulo
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Data: 18/08/2025

Editoria: Shopping Pátio Higienópolis
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Na dúvida entre proteger picanha ou reputação, varejo investe em IA contra furtos

O convite acontecia com alguma frequência. Gilmar (nome fictício) costumava ficar lisonjeado ao ser chamado para o churrasco na casa do cliente que ele considerava um amigo. Dono de uma pequena rede de supermercados de bairro em uma cidade no interior da Bahia, ele conhece muitos moradores e acaba criando amizade com parte da clientela.

Mas depois de contratar os serviços da Veesion, multinacional francesa especializada em softwares de vigilância por vídeo, Gilmar levou um susto, seguido de decepção. O cliente amigo, na verdade, furtava cortes de carne da sua loja. Era o próprio Gilmar quem estava pagando pelo churrasco na casa do cliente.

O exemplo do supermercadista ilustra um mal que o varejo se esforça em combater: furtos nas lojas. Segundo dados de uma pesquisa anual feita pela consultoria KPMG a pedido da Abrappe (Associação Brasileira de Prevenção de Perdas), o varejo brasileiro perdeu R$ 9,7 bilhões com furtos em 2024, praticados tanto por clientes (70% do total), quanto por colaboradores e fornecedores (30%).

A imagem mostra um centro de monitoramento com várias telas exibindo imagens de câmeras de segurança. Duas pessoas estão sentadas em frente a computadores, uma delas é uma mulher com cabelo longo e a outra é um homem com cabelo curto. As telas na parede mostram diferentes ângulos de câmeras, algumas com imagens de pessoas e veículos. O ambiente é bem iluminado e organizado.
Central de segurança do Carrefour, em Barueri (SP), que faz o monitoramento das lojas do grupo no Brasil. – Zanone Fraissat/Folhapress

Para muito além das câmeras de monitoramento, dos cadeados eletrônicos e das antenas antifurto, os varejistas vêm sofisticando as ferramentas para evitar esse tipo de perda, com a adoção de inteligência artificial para identificar atitudes suspeitas de clientes e mercadorias não registradas no caixa, além de controle de acesso por biometria, reconhecimento facial e até drones de segurança.

“Cerca de 60% dos furtos são cometidos por clientes regulares. São tipos acima de qualquer suspeita, muitas vezes conhecidos dos caixas e dos seguranças das lojas”, diz Mathieu Le Roux, presidente da Veesion no Brasil. “Gente que faz compras toda semana e que, uma vez, se atreveu a roubar alguma coisa. Viu que não teve consequências e aquilo virou um hábito –como o caso do ladrão de carne que convidou o dono do supermercado para o churrasco.”

Em 2024, o índice médio de perdas no varejo brasileiro foi de 1,51% das vendas líquidas, o equivalente a R$ 36,5 bilhões, segundo a Abrappe. O que é preocupante, uma vez que o setor trabalha com uma margem de lucro média de 2%. Os furtos não são a maior causa das perdas: o que mais dá prejuízo são as quebras operacionais (33,3% do total das perdas), o que envolve produtos danificados ou vencidos, por exemplo. Os furtos vêm em segundo lugar (26,5%), seguidos por erros de inventário (10%), erros administrativos (6,2%), fraudes (5,4%) e erros no cadastro (4%).

Mas os furtos são a maior dor de cabeça para o varejo porque podem implicar em uma perda muito maior: a de reputação. “O grande desafio do varejo hoje é tomar uma decisão equilibrada sobre o que será protegido: a reputação da empresa ou um quilo de picanha”, diz Elizeu Lucena, diretor de gestão de riscos, perdas, prevenção e crises do grupo Carrefour Brasil. Nesse sentido, diz, a inteligência artificial e demais ferramentas tecnológicas vêm ajudar quando o juízo de valor de quem faz a segurança nas lojas falha. “O importante é municiar as equipes com o máximo de informação antes de qualquer abordagem.”

Como maior varejista do país, dono de mais de 1.000 lojas das bandeiras Carrefour, Sam’s Club e Atacadão, o grupo conta com um amplo sistema de monitoramento: são cerca de 100 câmeras por estabelecimento, posicionadas em cada um dos corredores e caixas. “Estamos testando o uso de ferramentas de inteligência artificial para transformar as milhares de imagens gravadas todos os dias em informação”, diz Lucena. “A tecnologia contribui para que a pessoa não se guie por estereótipos”, diz.

No Brasil, o varejo coleciona crises de imagem por abordagens violentas e desproporcionais de seguranças a consumidores, que em parte das vezes sequer estavam praticando furtos. A pior crise da história do Carrefour teve origem em 19 de novembro de 2020, às vésperas do Dia da Consciência Negra, quando Beto Freitas, um cliente negro de 40 anos, foi espancado até a morte por seguranças de uma loja em Porto Alegre, após desentendimento com uma funcionária do caixa.

O grupo fechou um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com o Ministério Público, que envolveu o aporte de R$ 115 milhões em ações antirracistas, e investiu outros R$ 50 milhões por conta própria. O episódio fez o Carrefour mudar completamente seus protocolos de segurança: hoje todos os vigilantes que trabalham dentro das lojas são funcionários, não mais terceirizados, e usam câmeras corporais.

O caso repercutiu no varejo brasileiro como um todo. “O protocolo mudou: hoje a ordem é proteger a vida, depois a imagem da empresa e por último o patrimônio. Antes, o patrimônio era a prioridade”, diz Carlos Eduardo Santos, presidente da Abrappe. Em muitos casos, diz, a orientação é que o varejista desista da abordagem. “Será que vale a pena abordar uma senhora de 80 anos que, eventualmente, colocou uma goma de mascar dentro da bolsa? Ao lado de clientes que vão sacar o celular, começar a gravar e jogar o vídeo nas redes sociais?”, questiona.

Segundo Santos, a orientação da Abrappe é que, caso o varejista decida pela abordagem após flagrante, procure conter o furto, isolar o suspeito e por último negociar a devolução do produto. “Sempre em um ambiente reservado, mas de portas abertas, com a presença de seguranças de ambos os sexos”, diz.

Outro ponto é esclarecer o que é furto, que só ocorre depois que o produto passou pelo caixa sem ser pago. “O furto só é consumado após quatro elementos: cogitação (você pensa em furtar), preparação (pega o produto), execução (coloca dentro da bolsa) e consumação (passa pelo caixa sem pagar). Se você reuniu só os três primeiros elementos, não existe furto”, afirma Santos. “Se o cliente coloca uma garrafa dentro da calça e fica andando pela loja, ele tem um comportamento suspeito. Não furtou nada.”

Segundo Le Roux, da Veesion, a chance de o varejista pegar um furto em flagrante é de menos de 1%. Daí a importância de investir em tecnologia de monitoramento, diz ele, para treinar o algoritmo a fim de entender gestos suspeitos e enviar um alerta para a equipe de segurança, via aplicativo. O funcionário recebe entre 10 e 15 alertas por dia, junto com um recorte de vídeo. Ele pode ampliar a imagem e descobrir por si só se o algoritmo acertou ou não.

“O software ajuda a racionalizar a abordagem ao cliente, porque mede unicamente movimentos. O algoritmo não sabe se é homem ou mulher, se está de terno ou camiseta, qual a idade ou a cor da pessoa”, diz Le Roux. De acordo com o executivo, hoje a ferramenta da Veesion apresenta entre 50% e 70% de acerto nos alertas de furto. “Vamos melhorando esse índice ano a ano, conforme treinamos o algoritmo acerca dos gestos suspeitos”. Há alguns mais difíceis de serem captados, afirma, como quando alguém coloca um produto no bolso, por exemplo. “Pode ser o celular do cliente ou o xampu da prateleira.”

Lançada em 2018, a Veesion está presente em 25 países e faturou 12 milhões de euros (R$ 77,5 milhões) em 2024. Entre os sócios da startup, está o fundo Agláe Ventures, de Bernard Arnault, um dos homens mais ricos do mundo, que comanda o grupo LVMH, holding do mercado de luxo. Este ano, a empresa recebeu um aporte de 38 milhões de euros (R$ 245 milhões) para financiar a sua expansão para o Brasil e os Estados Unidos.

Imagem de monitoramento de loja enviada pelo software da Veesion – Divulgação

De acordo com a pesquisa da Abrappe, em 2024, houve crescimento de furtos em supermercados, atacarejos e farmácias. O varejo farmacêutico, em especial, foi alvo de furtos envolvendo canetas emagrecedoras.

A Pague Menos, terceira maior rede de farmácias do país, decidiu investir em tecnologia para evitar perdas de produtos de alto valor. A companhia tem usado inteligência artificial para desenvolver modelos preditivos, a fim de identificar a probabilidade de ter determinado número de clientes naquele dia e horário em busca de certos produtos em cada loja. Com isso, vem diminuindo os estoques nos pontos de venda. No caso das canetas emagrecedoras, boa parte das vendas é feita online.

Os caixas de autoatendimento, ou self-checkouts, também vêm recebendo ferramentas de inteligência artificial para detectar se todos os produtos passaram realmente pelo scanner. “Existe uma percepção de aumento de perdas na boca do caixa”, diz Santos. A pesquisa da Abrappe identificou que, nos grandes magazines, esse índice é de 7% das vendas e, nos supermercados, 6%. “Com o self-checkout, o varejo quer reduzir custo operacional e oferecer uma experiência mais fluida ao cliente, mas os furtos e erros de controle crescem e, às vezes, não compensa.”

Segundo Santos, hoje os itens mais visados no varejo alimentar são os que mais subiram de preço desde o ano passado, como café, carnes, chocolate e azeite. Lucena, do Carrefour, concorda. Quando se trata de atacarejo, a tentativa é furtar pallets inteiros de produtos. “O cliente sai com o carrinho por um caixa que não tenha a saída bloqueada”, afirma.

O levantamento da Abrappe ouviu 179 varejistas de todas as regiões do país, de diferentes segmentos –magazines, supermercados, hipermercados, lojas de conveniência, lojas de vizinhança, atacarejos, farmácias, lojas de eletromóveis, artigos esportivos, calçados, moda, telefonia, utilidades domésticas, materiais de construção e pet shops. Em 45% deles, o faturamento líquido supera R$ 500 milhões ao ano.

Entre os tipos de varejo, as lojas de conveniência e as lojas de vizinhança (mercadinhos de bairro) são as que apresentam o maior índice de perdas: 3,8% e 3,3%, respectivamente, das vendas líquidas. Na sequência, estão supermercados (2,5%), hipermercados (2%) e atacarejos (1,2%).

Santos afirma que o varejo investe, em média, o equivalente a 1,1% do faturamento líquido em ações para prevenção de perdas, sendo que 0,3% das vendas são destinadas ao aporte em tecnologia. Para o varejo, é melhor reduzir perdas do que aumentar vendas, diz. “Quando você aumenta a venda em 10%, não aumenta o lucro em 10% –porque tem impostos e custos fixos. Mas quando você reduz a perda em 10%, 100% desse total vai para a margem.”