A substituição tributária foi concebida com o objetivo de centralizar a arrecadação em um número reduzido de contribuintes, facilitando a fiscalização e combatendo a sonegação. Trata-se de uma sistemática voltada especialmente para setores com ampla pulverização de empresas, permitindo que o imposto seja arrecadado de forma antecipada ou concentrada, mediante o controle de um grupo limitado de contribuintes, usualmente localizado no início da cadeia produtiva.
Diante dessas características vantajosas para o fisco, o modelo foi amplamente adotado por diversas unidades da federação, sobretudo em segmentos de alto volume e ampla penetração no consumo popular. No Estado de São Paulo, por exemplo, uma vasta gama de produtos comercializados no varejo está submetida à substituição tributária, abrangendo: alimentos e bebidas; cosméticos, produtos de perfumaria e higiene pessoal; materiais de construção e reforma; veículos automotores; eletrodomésticos e eletrônicos; produtos para o segmento pet e agropecuário; produtos de limpeza e utilidades domésticas; artigos de papelaria e escritório; fumo e seus derivados; medicamentos, entre outros.
É difícil imaginar hoje um item comercializado em supermercados, farmácias, padarias, perfumarias, lojas de materiais de construção, petshops ou concessionárias que não esteja majoritariamente sujeito a essa forma específica de incidência do ICMS.
Embora concentre a carga tributária nos contribuintes situados nas etapas iniciais da cadeia — como indústrias e importadores —, a substituição tributária representa, para pequenos e médios varejistas, uma simplificação operacional: esses agentes ficam desobrigados de apurar créditos e recolher o ICMS. A complexidade da apuração tributária é transferida aos contribuintes com maior capacidade técnica e estrutura fiscal.
Simplificação e não cumulatividade
Nesse contexto, ganha relevância a proposta da reforma tributária, cujos pilares centrais são a simplificação, a não cumulatividade plena e a uniformização das regras de incidência, com vistas à eliminação de distorções, ao fortalecimento da segurança jurídica e ao estímulo à concorrência leal. Segundo o Ministério da Fazenda, a simplificação “significa mais transparência, pois o valor dos tributos cobrados nas aquisições de bens e serviços passará a corresponder exatamente à carga tributária suportada pelos cidadãos, o que hoje não ocorre“. [1]
É inegável que a reforma trará ganhos operacionais importantes para indústrias e importadores — atuais responsáveis pelo recolhimento do imposto sob o regime da substituição tributária. O mesmo nível de simplificação, contudo, é incerto para os pequenos e médios empreendedores que hoje atuam como “substituídos” na cadeia de consumo.
As preocupações que se impõem não se limitam à nova obrigação de apuração e recolhimento do IBS e da CBS. Se bem estruturadas, essas rotinas não devem representar um desafio intransponível aos contribuintes nem aos profissionais contábeis encarregados da implementação.
Os desafios mais sensíveis concentram-se em dois eixos: a redefinição da política de preços em toda a cadeia de circulação dessas mercadorias; e a necessidade de formalização das relações comerciais e da adoção de sistemas adequados de gestão fiscal.
Com isso, pretendo examinar os impactos concretos da transição do atual modelo tributário para o novo sistema sobre o setor varejista. Pretendo, ainda, identificar os principais pontos de atenção para os diversos elos da cadeia de consumo, além de destacar medidas que devem ser imediatamente adotadas por empresários e gestores para preservar margens operacionais e competitividade.
Nova política de preços
Como se observou, grande parte dos produtos comercializados no varejo brasileiro está atualmente submetida ao regime de substituição tributária. Na prática, o fabricante ou o importador é responsável pelo recolhimento antecipado do ICMS, em nome de todos os demais integrantes da cadeia, desonerando os agentes subsequentes — atacadistas e varejistas — do ônus tributário.
Esse recolhimento se dá com base em uma Margem de Valor Agregado (MVA), fixada por ato normativo, que projeta o valor final da operação ao consumidor. A MVA é um índice percentual aplicado sobre a base de cálculo para presumir o preço final de venda, servindo como parâmetro para o pagamento do imposto antecipado.
Entretanto, por tratar-se de uma presunção, é comum que a MVA não reflita com exatidão os preços efetivamente praticados no mercado. Essa divergência ensejou diversos litígios judiciais, notadamente a discussão sobre o direito ao ressarcimento ou ao complemento do imposto, conforme o preço real final tenha sido inferior ou superior ao presumido [2].
Aos contribuintes substitutos cabe a tarefa de calcular, embutir e recolher o imposto devido por toda a cadeia, gerindo cuidadosamente o impacto tributário sobre seus preços de venda. Já os contribuintes substituídos, por não estarem obrigados à apuração do ICMS [3], tratam o imposto como custo embutido no preço de aquisição, o que simplifica sua operação fiscal e precificação.
Com a entrada em vigor da reforma tributária, essa lógica será transformada. Fabricantes e importadores deixarão de concentrar o recolhimento dos tributos sobre o consumo, impondo a todos os agentes da cadeia — inclusive pequenos e médios varejistas — o dever de apuração do IBS e da CBS. Esses contribuintes, que até então operavam com margens baseadas em preços já tributados, precisarão rever seus markups, agora incluindo o valor dos tributos incidentes sobre suas próprias operações.
Esse novo cenário exigirá um esforço considerável de adaptação, especialmente por parte de empresários menos familiarizados com rotinas tributárias complexas. Trata-se de um aprendizado necessário, mas viável, já que o modelo a ser implementado se aproxima da prática de países com sistemas mais maduros. Embora desafiador, o processo de adaptação, se conduzido com planejamento e suporte técnico, não deve inviabilizar a atividade econômica.
A maior preocupação reside na herança do sistema atual: a estrutura de preços vigente é opaca, marcada por baixa previsibilidade e racionalidade. A dificuldade em identificar a real carga tributária incidente sobre cada produto compromete a gestão eficiente e torna imprecisa qualquer tentativa de projeção dos efeitos da reforma.
Essa opacidade favorece distorções, muitas vezes intencionais, por parte de agentes econômicos que buscam reduzir sua carga tributária de forma lícita ou, por vezes, ilícita. Não se pretende, aqui, entrar no espinhoso tema da elisão, elusão e evasão fiscal [4]. Contudo, a ocorrência de práticas como operações artificiais entre empresas vinculadas, simulação de preços e transferências interestaduais estratégicas são recorrentes e visam, quase sempre, minimizar a incidência do ICMS.
É nesse ambiente distorcido que a reforma tributária busca incidir, propondo racionalização e previsibilidade. Porém, a transição exigirá a revisão profunda das práticas comerciais e da política de preços adotada por importadores, indústrias, atacadistas e varejistas — o que inevitavelmente se refletirá nos preços pagos pelo consumidor final.
Diante disso, recomenda-se que advogados, contadores e empresários iniciem desde já um diálogo estruturado com seus fornecedores, especialmente indústrias e importadores, para aferir se os preços atualmente praticados refletem adequadamente a base de cálculo presumida pela substituição tributária. Em caso de distorções significativas, os impactos nos preços poderão ser severos, não apenas em função de eventuais majorações de alíquotas, mas também por conta da ineficiência estrutural herdada do modelo vigente.
Formalização das relações e sistemas de gestão
A não cumulatividade plena, um dos pilares do novo sistema, assegura ao contribuinte o direito de apropriar-se integralmente dos créditos tributários pagos nas etapas anteriores, independentemente da natureza da aquisição — se “essencial”, “relevante”, “insumo” ou “bem de uso e consumo”. Essa mudança elimina a subjetividade que hoje dificulta a apropriação de créditos e representa um avanço expressivo em termos de segurança jurídica.
Entretanto, esse benefício só se concretiza quando as operações são formalmente documentadas [5]. A ausência de nota fiscal ou de documentação hábil impede a apropriação do crédito, provocando uma cumulatividade indesejada e antagônica ao propósito da reforma.
De certo modo, esse efeito é deliberado: a reforma tributária busca estimular a formalização das relações comerciais, como forma de ampliar a base arrecadatória e aumentar a transparência. Contudo, exige-se, para isso, uma mudança cultural e operacional significativa, especialmente em um ambiente empresarial marcado por baixa maturidade fiscal.
Será indispensável, portanto, que os empresários — sobretudo os de micro, pequeno e médio porte [6] — passem a documentar integralmente suas aquisições, estabelecendo relações comerciais formais com seus fornecedores. Para tanto, é igualmente essencial a adoção de sistemas de gestão capazes de controlar entradas de bens, mercadorias e serviços com precisão e integridade.
A reforma, ao fomentar a formalização, também cria um ambiente mais competitivo e justo. Empresas que operam na informalidade ou com baixa governança perderão espaço. O período de transição deve ser aproveitado para estruturar processos, qualificar a equipe contábil e regularizar eventuais passivos fiscais, assegurando uma inserção sustentável no novo modelo.
Conclusão
A substituição tributária, embora concebida como um mecanismo de racionalização da arrecadação, acabou por criar, ao longo dos anos, um ambiente de complexidade assimétrica: enquanto simplificou o cumprimento das obrigações pelos atacadistas e varejistas, concentrou encargos e obrigações nos elos iniciais da cadeia de consumo — o que, em certos casos, facilitou operações artificiais entre empresas vinculadas, simulações de preços e estratégias não ortodoxas voltadas à minimização da carga tributária.
O novo modelo, alicerçado na não-cumulatividade plena, na transparência e na descentralização da apuração tributária, representa uma ruptura relevante para o setor varejista. A extinção da substituição tributária, combinada com a necessidade de apuração do IBS e da CBS por todos os contribuintes, demandará a reestruturação da política de preços, a formalização das relações comerciais e a modernização dos sistemas de gestão.
Embora o momento exija cautela, a transição para o novo regime oferece oportunidades importantes. Ao promover maior previsibilidade, segurança jurídica e isonomia concorrencial, a reforma pode corrigir distorções históricas e ampliar a competitividade dos agentes econômicos que se prepararem adequadamente.
Cabe, portanto, aos empresários e profissionais do direito e da contabilidade assumirem um papel proativo. A adaptação bem-sucedida não dependerá apenas de mudanças normativas, mas de decisões estratégicas tomadas ainda no período de transição: revisão de contratos, mapeamento da cadeia de fornecimento, auditoria fiscal preventiva e investimentos em governança tributária.
O fim da substituição tributária não representa o fim da complexidade, mas sim a abertura de um novo ciclo — em que a eficiência, a conformidade e a transparência fiscal deixarão de ser diferenciais para se tornarem pré-requisitos de sobrevivência e prosperidade no mercado.
[2] Vide Tema de Repercussão Geral 201/STF.
[3] Faz-se uma ressalva porque, em alguns casos, contribuintes substituídos se tornam substitutos em determinadas operações, como a aquisição interestadual de mercadoria sujeita ao ICMS-ST no Estado. Nesse caso, cabe ao adquirente apurar e pagar o ICMS-Antecipação, uma tarefa nada fácil ao contribuinte que não tem o hábito de fazer tal operação.
[4] A quem interessar se aprofundar no tema, a elisão fiscal consiste na utilização de mecanismos legais para reduzir ou evitar a incidência de tributos. A elusão fiscal, por sua vez, ocorre quando um planejamento aparentemente legítimo é executado de forma abusiva com o objetivo de dissimular a ocorrência do fato gerador e, assim, evitar a tributação. Por fim, evasão fiscal é uma conduta manifestamente ilegal, caracterizada pelo não pagamento de tributos devidos por meio de fraudes, omissões ou manipulações.
[5] Lei Complementar 214/2025: “Art. 47. O contribuinte sujeito ao regime regular poderá apropriar créditos do IBS e da CBS quando ocorrer a extinção por qualquer das modalidades previstas no art. 27 dos débitos relativos às operações em que seja adquirente, excetuadas exclusivamente aquelas consideradas de uso ou consumo pessoal, nos termos do art. 57 desta Lei Complementar, e as demais hipóteses previstas nesta Lei Complementar. (…) § 2º Os valores dos créditos do IBS e da CBS apropriados corresponderão: I – aos valores dos débitos, respectivamente, do IBS e da CBS que tenham sido destacados no documento fiscal de aquisição e extintos por qualquer das modalidades previstas no art. 27;”
[6] Os contribuintes sujeitos ao Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Simples Nacional) são excetuados do regime regular do IBS e da CBS (art. 41, § 1º, da LC 214/2025), podendo, contudo, exercerem a opção de apurar e recolher o IBS e a CBS por esse regime regular (art. 41, § 3º, da LC 214/2025). Contudo, o pilar da não-cumulatividade plena, que torna a apropriação de créditos integral, fará com que a adoção do regime regular do IBS e da CBS seja necessária para a manutenção da competitividade empresarial.