Empresas aceleraram os repasses de aumento nos preços de produtos e serviços para a classe média, na busca de recomposição de margens, e porque identificaram espaço para cobrar mais sem perder volume de venda.
Varejistas e fabricantes de moda, acessórios e bebidas, em linhas mais voltadas a esse público, além de serviços como seguro de carro, TV por assinatura e aplicativos de transporte reajustaram, especialmente, a partir de maio em ritmo mais forte.
Caso isso ganhe força, pode começar a inverter um movimento, visto entre outubro de 2024 e março de 2025, quando a população de baixa renda carregava uma inflação pesada – após escalada no preço dos alimentos – e cuja elevação afetou mais esse consumidor do que a classe média. Em termos de impacto, o reajuste em serviços já chegou a dois dígitos neste ano.
Relatórios de analistas de bancos, em encontros com companhias de capital aberto nas últimas semanas, identificaram esse cenário, assim como dados de inflação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) mostram altas recentes mais expressivas nas camadas de maior renda.
Além disso, de acordo com outro índice, publicado na semana passada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), houve uma desaceleração da inflação nas classes de renda muito baixa, baixa e média-baixa (veja tabelas nesta página) de maio para junho. Só que, nas faixas média-alta e alta, ocorreu o oposto.
Entre os mais ricos, da classe A, a inflação pulou de 0,08% em maio para 0,28% em junho, com o peso das passagens aéreas e novas tabelas dos aplicativos.
Já no caso dos mais pobres, no mesmo intervalo, o ritmo de alta nos preços recuou quase pela metade, de 0,38% para 0,20%.
É preciso considerar, porém, que ao se analisar no acumulado de 2025, até junho, ainda é a população de menor renda que continua com o orçamento mais pressionado no país.
Pesa nessa conta o encarecimento de itens básicos com quebra de safras, após a piora das condições climáticas no mundo, o aumento na demanda global por bens de consumo, e a valorização do dólar – a alta alcançou 25% em 2024, versus avanço menor do real, de 12% de janeiro a junho de 2025.
Ainda entra nesse cálculo a elevação nas tarifas de energia elétrica, aplicadas pelas distribuidoras, e seu impacto no orçamento desse consumidor.
Dentro desse cenário, de acordo com o Ipea, no primeiro semestre, a inflação das classes baixa e média baixa ficou em 3,15% e 3,09%, respectivamente, já nas classes média e média-alta, a variação está ligeiramente menor, em 2,97% e 3,04%
Especialistas lembram que essas projeções dependem da pressão inflacionária do momento. E com base nessa lógica, a proposta de tarifação do governo americano sobre o Brasil, em 50% a partir de 1º de agosto, joga mais pressão sobre a cotação do dólar. E, logo, no custo dos itens “commodities”, que podem voltar a afetar os alimentos.
Desde que foi anunciado o tarifaço ao Brasil, no dia 9 de julho, o dólar valorizou-se 2,2%.
Na visão de Maria Andreia Parente Lameiras, técnica de planejamento e pesquisa do Ipea, o que pesou menos na conta das classes média e alta, em parte do ano, foram as tarifas aéreas mais baratas, frente ao ano anterior. Só que, como as empresas de serviços e de consumo – fabricantes e varejistas – ainda precisam recuperar rentabilidade, isso tem comprometido a renda desse consumidor.
Há muita empresa que ainda não conseguiu recompor a margem após o fim da pandemia”
— Maria Lameiras
“Há muitas empresas que ainda não conseguiram recuperar totalmente a margem [de lucro] após o fim da pandemia, frente às margens que tinham antes da covid, e também houve ainda a recomposição dos salários dos trabalhadores [nos dissídios do primeiro semestre], e as companhias acabam repassando isso quando identificam espaços”, afirma. O cenário de recuperação nos salários cria ambiente para esse movimento.
Neste mês, varejistas estiveram em reuniões com a equipe de análise do Citi, para atualizar o cenário macroeconômico, e a sinalização é de demanda em alta nas classes média e média-alta, e com absorção dos reajustes praticados.
Relatório do analista João Pedro Soares, do Citi, sobre Lojas Renner, diz que os maiores gastos do consumidor neste ano beneficiaram, principalmente, o vestuário, e a taxa de juros mais elevada pesou sobre eletrônicos e setor automotivo. A empresa tem foco em camadas de maior renda, especialmente na classe B.
“Esse ambiente mais favorável permitiu que os varejistas de vestuário aumentassem os preços, abandonando o crescimento da receita essencialmente impulsionado pelo volume”, escreveu ele.
Soares diz que a menor necessidade de a empresa fazer remarcações, promovendo descontos, além dos ganhos com a rede Camicado, pertencente a Renner e voltada para as classes A e B, tendem a melhorar a margem bruta da companhia.
Questionada, a Renner disse, em nota, que os movimentos de “ajustes de preços” refletem o aumento de custos, dado o impacto de fatores como inflação e câmbio em matérias-primas, serviços, remuneração, entre outros.
O consultor e sócio da Mixxer Consultoria, Eugenio Foganholo, diz que há um mapeamento diário do desempenho pelo comércio, em termos de volume vendido e receita, para se identificar a capacidade de absorção de ajustes nos preços. Essa análise verifica a postura da concorrência local e o preço praticado pelo líder do segmento.
“Repasses da indústria ao varejo são sempre mais rápidos do que do varejo ao consumidor, que promove altas não só de forma mais lenta, como de maneira mais irregular”, diz ele.
Acontece que, segundo ele, a classe de menor renda “pagou mais esse pato meses atrás”, e isso reduziu espaço para se promover aumentos para essa população em outros segmentos, mesmo com ganhos salariais no ano. Além disso, em ambientes em que a concorrência perde força ou se algum competidor tem dificuldades, há espaço maior para repasse de pressões em custos aos preços, ou mesmo para ampliar a rentabilidade.
Um executivo do varejo de moda cita, como exemplo, o caso da tributação de 20% sobre a importação dos sites de moda asiáticos em até US$ 50, após agosto de 2024, o que favoreceu a venda das varejistas de vestuário nacionais. O executivo ainda menciona a recuperação judicial na rede de supermercados St. Marche, concorrente mais forte do Pão de Açúcar em São Paulo, e ambas voltadas à classe média. A rede pediu proteção judicial em abril.
Controlado pelo GPA, o Pão de Açúcar disse a analistas, em maio, que o negócio tem mostrado maior resiliência, pelo sortimento “premium”, o que tem permitido aumento de volume com expansão no tíquete médio neste ano.
Isso abriu espaço para a alta na venda das chamadas “mesmas lojas” (abertas há mais de 12 meses) de 6,5% de janeiro a março. Sobre o tema da concorrência, o GPA não se manifestou. Fonte próxima ao St. Marche afirma que a rede manteve a sua competitividade no mercado.
Ainda nesse mercado de produtos não-duráveis, a Heineken disse, em abril, que o mercado de cervejas em geral não estava crescendo no país, mas a demanda se mantinha aquecida nas marcas “premium” Amstel e Heineken, segundo Harold van den Broek, diretor financeiro do grupo.
Analistas Bank of America (BofA) citam que houve um aumento dos preços nessas cervejas premium, especialmente da Heineken, de 5,7% no canal de bares e restaurantes entre dezembro e março. Ainda afirmam que Ambev também reajustou os preços de marcas como Stella Artois e Corona, mas num ritmo inferior, de 1,7% e 1,4%, respectivamente.
Procuradas, Ambev e Heineken não se manifestaram. De acordo com nota da semana passada do colunista Lauro Jardim, do jornal “O Globo”, a Heineken já teria batido martelo para reajustar em 6% o preço de suas bebidas após julho.
Em outro mercado, de joias e acessórios, a marca mais “democrática” da Vivara, a Life Vivara, focada na classe média, afirmou que reajustes promovidos neste ano, em determinadas linhas, têm sido bem recebidos pelo consumidor, sem efeito negativo no volume.
“[Promovemos] aumentos na linha ‘Moments’ com bom reflexo na dinâmica de preço e volume”, disse a analistas em maio, Caio Barbuto, gerente de relações com investidores da empresa.
Na categoria de serviços, que tem peso maior na cesta de gastos da classe média, levantamento feito pelo Valor mostra alta de certos itens superior ao índice geral, e outros sob maior controle. O transporte por aplicativo, só em junho, disparou 13,7%, após alta de 5% em maio. Em serviços médicos e dentários, a inflação acumula 4,25% de janeiro a junho, acima dos 2,99% de o IPCA. Seguro de carro avançou menos, 3% em 2025.