Veículo: Valor Econômico
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Data: 21/05/2025

Editoria: Shopping Pátio Higienópolis
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Por que estabelecer comunidades se tornou crítico para as marcas

Airon Martin: “Meu consumidor é quem consome minha ideia” — Foto: Ana Paula Paiva/Valor
Airon Martin: “Meu consumidor é quem consome minha ideia” — Foto: Ana Paula Paiva/Valor

Airon Martin tem bons motivos para se definir como “forasteiro”. Antes de chegar a São Paulo aos 21 anos para estudar design, ele já havia experimentado jogar vôlei, trabalhado como vendedor de automóveis e abandonado dois cursos universitários – direito e medicina. Sem conexões no mundo da moda ou experiência no varejo, Martin transformou seu projeto de conclusão de curso na Misci, uma das marcas brasileiras mais respeitadas da atualidade, com clientes como o cantor britânico Sam Smith, a DJ e cantora sul-coreana Peggy Gou e a apresentadora americana Oprah Winfrey.

Lançada em 2018 como um estúdio de vestuário e mobiliário de luxo, a Misci trilhou um caminho singular, impulsionada pela visão criativa de seu fundador e fortalecida pelo apoio de investidores. Mas o sucesso da marca também conta com um ingrediente mais sutil e frequentemente negligenciado: a habilidade de cultivar comunidades de consumidores leais e engajadas.

“O Brasil tem muitas marcas de roupa, mas poucas de moda, observa Martin. “Falta [ao empreendedor brasileiro] trabalhar para criar comunidades. Muita gente já quebrou por isso.”

A ascensão das comunidades on-line na estratégia de negócios se deve a uma série de fatores. As novas gerações mudaram o comportamento do consumidor, tornando-o menos fiel às marcas. Paralelamente, com o aumento do comércio eletrônico e dos marketplaces, o cliente deixou de ir à loja física, reduzindo substancialmente as oportunidades de interação das empresas.

Nesse cenário, fomentar grupos de consumidores tornou-se crítico para que as marcas possam restabelecer conexões, antecipar tendências, disseminar valores e criar um ambiente competitivo que vá além de preço baixo e promoções.

“A mensagem da marca deixou de ser uma via de mão única para se tornar de mão dupla. Não podemos só falar. Também precisamos ouvir”, diz Diego Tranquellim, gerente de marketing sênior da Smiles, empresa da Gol Linhas Aéreas que opera um dos maiores programas de fidelidade do país.

Criada em 2004, pela hoje extinta Varig, a Smiles deu uma guinada estratégica em 2020, em meio à pandemia de covid-19 e ao isolamento social. O primeiro passo foi deixar o enfoque transacional, baseado na venda em si, e adotar uma abordagem mais relacional, voltada à experiência do indivíduo. “Passamos a apresentar o ato de viajar como uma forma de a pessoa atingir seus propósitos de vida. Sempre voltamos mudados quando viajamos. Não somos nós que fazemos as viagens, elas é que nos fazem”, diz Tranquellim.

A companhia identificou cinco territórios de interesse – viagem, família, esportes, moda e cultura/entretenimento – e fez pesquisas para saber qual perfil de consumidor se reúne em torno de cada um deles. Depois, selecionou pessoas com exposição na internet, capazes de reproduzir sua mensagem a grupos maiores, e as dividiu em duas categorias: alfas e betas. Os primeiros são clientes que “curtem” a marca, mas são leigos nos temas escolhidos. Já os betas são especialistas nesses assuntos, têm experiência em marketing de influência e alcance na internet.

A Smiles também reformulou sua plataforma on-line, lançou um hub de conhecimento chamado “Te Levo Milhas” (que já existia, mas com abrangência menor) e reuniu alfas, betas e clientes em grupos nas principais redes sociais, como WhatsApp, Telegram e Instagram. Além disso, começou a coproduzir conteúdo digital com os parceiros escolhidos.

As mudanças surtiram resultados. Antes estritamente profissional, a comunicação com os clientes adotou um tom pessoal, levando mais consumidores a compartilharem suas expectativas e opiniões. Por exemplo, ao fim de um mês a sugestão de um consumidor relativa ao serviço de carro por aplicativo aumentou em 15% a taxa de conversão do serviço, expressando um aumento considerável no número de usuários que completaram a ação desejada no site.

A próxima e mais ambiciosa fase é a de vivência, em que a comunidade se torna porta-voz espontânea da marca, disseminando a mensagem de forma orgânica. “Não queremos apenas nos comunicar, queremos ser relevantes”, enfatiza Tranquellim. Essa busca po relevância é corroborada por um estudo recente da consultoria Warc Advisory e do TikTok. A pesquisa mostra que a relevância cultural de um anúncio, quando este aborda tópicos em alta, aumenta a probabilidade de comprar o produto para 56% das pessoas, sublinha o executivo. A abordagem pessoal é determinante para 78%.

“No século XXI, criar comunidades é a melhor maneira de ter consumidores fiéis e amantes da marca. Em vez da abordagem funcional, que não vai fazer diferença, é preciso inspirar confiança. O [meio] digital potencializa isso ao tornar mais fácil conectar pessoas com objetivos e interesses comuns”, afirma Mariana Stabile, fundadora e CEO da Sharp Inteligência Cultural, agência especializada em reputação de marcas.

Em vez do conceito tradicional de mensagem massiva, as empresas precisam adotar a “intimidade massiva”, diz Stabile. Isso significa conversar com muitos clientes, mas com um nível de compreensão tão profundo que a mensagem soará pessoal para cada um.

“A cultura é o pano de fundo de tudo isso”, ressalta a especialista. Ela exemplifica essa tendência com fenômenos como a cultura de ostentação, muito ligada ao funk, que trouxe uma estética das periferias capaz de atrair grandes marcas. “Pertencer a um grupo é uma motivação enorme, não importa se esse grupo quer seguir ou contrariar o ‘status quo’”, explica.

A americana SharkNinja, de dispositivos pessoais e domésticos, aposta nas comunidades para apresentar-se aos brasileiros. Popular em países como Estados Unidos e Reino Unido, a empresa, que chegou ao Brasil há oito meses, quer entender as preferências locais em relação a seus produtos importados e definir o posicionamento mais adequado ao país. “Estamos abertos a entender do que as pessoas gostam ou não gostam. Queremos ser uma marca conhecida e confiável”, diz Hervé Baurez, diretor de marketing da SharkNinja para América Latina.

A marca oferece uma extensa linha de produtos no exterior, de secadores e modeladores de cabelo a aspiradores de pó, máquinas de café e purificadores de ar. Nos EUA, a percepção é de que a marca oferece inovação e tecnologia, mas a preços acessíveis. Já na América Latina ela é vista como produto premium, diz Baurez. No Brasil, as diferenças regionais e de renda tornam um desafio escolher a proposta de valor adequada. “Há lares que contam com poucos recursos e outros com três ou quatro aparelhos do mesmo tipo. Alguns dos nossos produtos têm custo elevado, mas temos opções mais em conta. Não nos interessa ser inacessíveis”, afirma o executivo.

Comunidades podem influenciar até o processo produtivo. Na Misci, os consumidores sugerem matérias-primas e avaliam seu uso nas coleções, o que estimula a busca constante por novos materiais. Esse intercâmbio se estende ao que é intangível. “Meu consumidor não é só quem compra meu produto. É quem consome minha ideia”, diz Martin.

Misci vem da palavra miscigenação, que resume a maneira como a marca quer representar o Brasil. A globalização trouxe códigos de desejo de consumo que precisam ser bem interpretados para que funcionem para as empresas, afirma o designer. Para ele, quanto mais regional o produto, maior sua capacidade de ser internacional. “O futuro é miscigenado. E queremos falar com as comunidades miscigenadas do mundo inteiro”, diz.

O interesse pela Misci explodiu depois que Oprah Winfrey entrou na loja da marca no Shopping Cidade Jardim, em São Paulo, e saiu de lá com três bolsas. O fato gerou mídia espontânea e capturou a atenção das pessoas. Agora, a empresa quer se expandir para outras áreas e se tornar um grupo. Cosméticos estão entre os próximos passos. No mês passado, o convite da Misci para seu desfile na São Paulo Fashion Week foi um lubrificante erótico desenvolvido pela marca, numa alusão ao romance “Tieta do Agreste”, tema do desfile. “O que as pessoas querem comprar é identidade”, diz Martin.