Veículo: Folha de S.Paulo
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Data: 25/04/2025

Editoria: Shopping Pátio Higienópolis
Assuntos:

O pacto de Higienópolis

Folha de SP – Tati Bernardi-PDF

O bairro de Higienópolis, sonho de ascensão social de alguns paulistanos, incluindo essa cronista que não costuma se esquivar de assumir seus ridículos, foi palco na última quarta-feira de uma das mais emocionantes e urgentes manifestações contra o racismo.

O protesto, com cerca de 500 pessoas, entre elas estudantes, professores e pais, ocorreu após inúmeras denúncias de racismo dentro do shopping Higienópolis, a mais recente contra dois estudantes do colégio Equipe.

Se você é branco, caminhar pelo shopping Higienópolis pode ser bastante agradável. “Tem um gostosinho de sala de avó que gosta de livros e chazinhos” costuma me dizer uma amiga, assídua frequentadora do espaço. “Não me dá aquele ruim que sinto lá para os lados do Itaim, é menos metido, menos ‘direitoso’ e mais aconchegante”, ouvi outro dia de uma colega progressista e feminista.

A imagem mostra um grupo de pessoas participando de um protesto. Em primeiro plano, uma pessoa segura um cartaz azul com a frase 'O SEU SILÊNCIO É RACISMO' escrita em letras grandes e destacadas. Ao fundo, há outros cartazes com mensagens contra o racismo. O ambiente parece ser urbano, com árvores e pessoas visíveis ao redor.
Manifestantes fazem ato em resposta ao episódio de racismo sofrido por crianças no shopping Pátio Higienópolis, região central da capital paulista – Danilo Verpa – 23.abri.25/Folhapress

Ali marco minhas reuniões na livraria, nos restaurantes e nos cafés. Aos finais de semana, levo minha filha ao teatro, ao cinema, ao parquinho no último andar, à sorveteria. Vamos a pé, de mãos dadas, ela dando saltinhos felizes, até começar a murchar e a me perguntar insistentemente sobre as pessoas dormindo nas calçadas. E então, frustrada com as minhas tentativas desajeitadas de explicar desigualdade social a uma criatura tão pequena, ela simplesmente me culpa por aquelas pessoas estarem tão desassistidas “se você é mãe deveria fazer alguma coisa”. Ou culpa a Deus (também errei em ter tantos santos pela casa).

Não tem um segundo do meu dia em que eu não pense que está tudo errado. Moro errado, educo errado, vou a lugares errados, ando com gente errada e sou a pessoa errada com quem muitos andam. E faço o que a respeito disso? Uma crônica? Grandes merdas. Como uma mãe educa uma criança para que ela seja melhor do que a mãe? Fica aí a pergunta no ar perfumado do andar da loja Sephora.

Olha, Rita, a mamãe faz parte de um pacto escroto de branquitude e está, além de protegida, ocupadíssima em ter cada vez mais dinheiro e sucesso e reconhecimento, e é porque pessoas como a mamãe existem que as outras, que dormem nas ruas, existem também. Não assim de forma tão direta, eu… enfim, só te peço uma coisa: seja melhor do que eu. Saiba observar mais, se indignar mais e se enojar mais.

Hoje, dia seguinte da manifestação no shopping, fico sabendo que uma moradora do meu prédio chamou minha funcionária, ao vê-la no elevador social, de fedida. Aviso que vou chamar a polícia. O porteiro liga para a síndica que liga para o filho da mulher e todos aparecem em minha porta: “ela tem demência, não fala coisa com coisa, não faz por mal”. Maria me implora para que eu não faça nada. O filho me mostra atestados, receitas médicas, exames. A mulher de fato é doente mental. Ou talvez sejamos (todos os brancos de Higienópolis) dementes que não falam coisa com coisa. Só não concordo que não seja por mal.