A antiga diretoria da Americanas, hoje sob investigação policial, discutiu com funcionários de bancos como gostaria que fossem feitas as cartas de circularização e documentos relativos a uma oferta de ações da empresa, de forma que as operações de risco sacado não aparecessem no documento para as auditorias ou, no segundo caso, não fossem descritas com esse nome. Trocas de mensagens e e-mails que mostram essas negociações constam do relatório feito pelo comitê independente contratado pela Americanas para investigar a fraude, obtido pelo Valor.
O documento, apresentado à empresa em meados de julho após um ano e meio de trabalho, ainda não foi divulgado ao mercado. No relatório, o comitê não usa a expressão “fraude” para se referir às inconsistências contábeis de R$ 25 bilhões encontradas na Americanas – diferentemente do termo usado pela companhia para explicar o rombo.
O material mostra como funcionavam as operações de risco sacado, aquelas em que os bancos antecipavam pagamentos a fornecedores da varejista e, depois, cabia à empresa pagar a instituição financeira. Essas operações, muito usadas no varejo, não estavam devidamente contabilizadas pela Americanas.
Bancos converteram em ações R$ 12 bilhões em dívidas da Americanas na reestruturação
Não há evidência de que os bancos tenham participado de fraude ou que soubessem dela. As instituições financeiras não são alvos de inquérito policial e fizeram suas próprias apurações internas depois da descoberta do caso, apurou o Valor. O que os diálogos expostos no relatório indicam é uma disposição de funcionários da área comercial em ajudar o cliente – uma empresa grande no mercado e com acionistas mais importantes ainda, o trio formado pelos empresários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira.
O relatório mostra que, no memorando da oferta de ações realizada pela Americanas em 2017, em que a empresa captou R$ 2,4 bilhões, Itaú Unibanco, Santander e Bradesco fizeram ajustes nos termos com que descreviam as operações de risco sacado. Os três faziam parte do grupo de coordenadores da oferta e, no material destinado a investidores, precisavam explicitar o relacionamento que tinham com a varejista.
A redação do item relativo a essa linha foi mudando, após pedidos de ajustes feitos pela empresa, até chegar à versão final. Nela, os três bancos descreveram o produto como operações de antecipação de fornecedores, sem garantia, segundo e-mail enviado por Fabio Abrate, então diretor financeiro da Americanas, aos demais diretores da varejista, em 23 de fevereiro de 2017.
Mensagens trocadas entre os executivos da Americanas nos três dias anteriores sinalizam o objetivo em tirar dos textos a menção a risco sacado e a “confirming”, nome também dado ao produto. “Com Santander na linha. O fantasma nos persegue”, diz Abrate em mensagem no dia 20.
Outra alteração é que, num e-mail do próprio Abrate no dia 21, a redação sugerida para o Itaú descrevia as operações do banco como tendo “garantia de nota promissória”, diferentemente do que diz o texto final.
Quando finalmente se chega a um acordo para o memorando, Anna Saicali, diretora da Americanas, demonstra alívio: “Ufa!”, diz em mensagem na noite de 22 de fevereiro. Quase uma hora e meia mais tarde, volta ao assunto: “Desmontada a bomba do memorando. Fala para o (então diretor de relações com investidores) Luiz Saraiva relaxar”.
O memorando era necessário para que a oferta fosse para a rua, o que explica o alívio dos executivos.
Ao longo de 2017, depois do parecer da CVM, os bancos mudaram o formato do risco sacado
Ainda de acordo com o relatório, as auditorias KPMG e PwC teriam recebido minutas preliminares do memorando “que indicavam a existência de operações de risco sacado com determinadas instituições financeiras” e “na versão final do documento, há referência apenas a operações de ‘antecipação de fornecedores’”.
Prospectos e memorandos de ofertas de ações são documentos que fazem parte do material para promover a operação. Neles, são descritas todas as informações relativas ao emissor, aos termos da oferta, aos riscos e aos objetivos da captação. São, portanto, uma ferramenta importante para investidores. É comum que a redação desse documento tenha várias versões e passe por muitas mãos, como bancos coordenadores e advogados, de forma a padronizar a informação e a mitigar riscos jurídicos. O que chama atenção no caso da Americanas é a preocupação dos executivos da empresa com a exposição de detalhes sobre o risco sacado.
As tratativas sobre a oferta se deram semanas depois de a companhia ter pedido a bancos que retirassem o risco sacado das cartas de circularização enviadas às empresas de auditoria (naquele ano, a KPMG). Foi o que aconteceu, por exemplo, com o Itaú. Como já noticiou o Valor, o banco negou a solicitação da varejista para substituir uma carta por outra em que não constasse a operação. O que a instituição financeira fez foi anexar à carta uma folha com respostas a um pedido de esclarecimento feito pela empresa sobre algumas linhas, que não incluíam o risco sacado.
O assunto estava em evidência porque, no fim de 2016, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) divulgou um parecer para orientar quando uma operação de risco sacado poderia ser registrada na conta de fornecedores e quando deveria ser reconhecida como dívida nos balanços. O documento causou frenesi no mercado, já que até então essa era uma discussão nebulosa e muitas empresas preferiam deixar essas operações como fornecedor.
Em janeiro de 2017, na época do fechamento do balanço do ano anterior, a Americanas começou a pressionar os bancos para que retirassem o risco sacado das informações de operações de crédito que circularizavam com os auditores da empresa.
Um ano mais tarde, para fazer as demonstrações financeiras de 2017, a Americanas voltou à carga, como mostram novas conversas disponíveis no relatório.
Numa delas, um então funcionário do Santander (hoje não mais no banco) diz como o pedido deveria ser feito para que a informação não constasse da carta. Em e-mail de 16 de fevereiro de 2018, essa pessoa afirma que a redação precisaria ser “exatamente no mesmo modelo das cartas anteriores” para que o risco sacado não aparecesse. Nele, poderiam ser registradas apenas as operações diretas da empresa com a instituição financeira. Só que, no novo modelo adotado pela companhia, segundo o executivo, todas as operações deveriam ser consideradas, inclusive as de fornecedores. “Ao se considerar (sic) todas as operações registradas, não temos ângulo para não incluir operações de confirming (nome usado no Santander para operações de risco sacado). Parece uma diferença sutil, mas conceitualmente faz toda a diferença na confecção da carta. Qualquer dúvida, pode me ligar”, escreveu o funcionário do banco na mensagem enviada a um superintendente de tesouraria da Americanas.
Ao longo de 2017, depois do parecer da CVM, os bancos mudaram o formato do produto risco sacado, conforme a demanda das empresas. Até então, prevalecia um modelo em que a instituição financeira fazia um convênio com a companhia, e, para antecipar pagamentos a fornecedores, era necessária a anuência dela. Depois, o produto passou a ser oferecido como uma cessão de crédito junto ao fornecedor, sem a necessidade a intervenção da empresa. O banco antecipava os recebíveis ao fornecedor e, no dia do vencimento da duplicata, recebia o pagamento da empresa.
Foi a partir do uso desse novo mecanismo que a menção ao risco sacado saiu das cartas de circularização de algumas instituições financeiras de 2018 em diante, já que o relacionamento passou a ser direto entre banco e fornecedor.
Em fevereiro daquele ano, Abrate compartilha com outros diretores da varejista, num grupo de conversa no Whatsapp chamado Money!!!, uma mensagem de um executivo do Bradesco dizendo que havia conseguido aprovar internamente que não houvesse menção às operações de antecipação a fornecedores, “como vocês haviam pedido”. Em seguida, Abrate escreve aos colegas: “Retorno final que faltava. 100% das cartas sem a informação. Vitória nossa”. E acrescenta: “Faltava só o Bradesco. Todos sem a informação. Itau, Santander, BB, Bradesco e Safra”.
Segundo levantamento feito pelo comitê independente, nos testes de circularização feitos pelas firmas de auditoria de 2012 até 2020, aparecem 22 respostas de instituições financeiras indicando a existência de saldo em aberto em operações de risco sacado. Em alguns anos, houve o envio de novas respostas por nove desses bancos.
Além do risco sacado, a varejista pediu ao Banco do Brasil (BB) que retirasse das cartas de circularização a menção a um cartão de crédito corporativo. Em troca de mensagem com um funcionário da área financeira da Americanas em fevereiro de 2019, uma funcionária do BB diz estar tentando “contornar o assunto”, mas que está “bem difícil”. E faz uma sugestão de como o cartão poderia ser mencionado, mas o representante da varejista diz que “não funciona”. A conversa se estende por alguns dias, mas não fica claro o desfecho.
O cartão de crédito tornou-se um assunto sensível porque, de acordo com o comitê, há indícios de que parte dos juros das operações relativas à B2W não foi registrada como despesa financeira.
O relacionamento entre a Americanas e as instituições financeiras ocupa 47 das 266 páginas do relatório do comitê, descreve conversas entre funcionários da empresa e de bancos, mostra como eram feitas as operações e apresenta diálogos entre diretores da varejista sobre o relacionamento bancário.
O documento apresenta a natureza variada das operações de risco sacado. Algumas transações geravam um prêmio para a companhia, enquanto em outras a empresa fazia um reembolso ao fornecedor pago antecipadamente. Nesse caso, a Americanas se comprometia a cobrir o desconto sobre o valor de face do título cedido, o que implicava uma despesa financeira para a companhia.
Segundo o material, o contrato de risco sacado identificado na apuração é de 2008. No entanto, não houve divulgações sobre as operações com essa linha nas notas explicativas dos balanços de 2013 até setembro de 2022. E, de acordo com o comitê, há indícios de que pelo menos R$ 3,4 bilhões em despesas financeiras relacionadas ao risco sacado não tenham sido contabilizadas. Para isso, a empresa teria lançado mão de redutores nas contas de fornecedores ou em outros passivos.
Em contrapartida, há registros contábeis do reconhecimento de prêmios de R$ 290 milhões na Americanas física e de R$ 106 milhões na B2W entre 2013 e 2022. Esses prêmios eram pagos pelos bancos a título de comissão pelas operações de risco sacado trazidas pela empresa.
O comitê diz que, como parte dos trabalhos de investigação, entrou em contato com bancos, que, no geral, afirmaram que os contratos de risco sacado que mantinham com a empresa são legítimos e usuais; que a contabilização das operações de uma empresa é de responsabilidade dele própria; que as cartas de circularização são só um dos instrumentos usados pelas auditorias para confirmar informações e que eram insuficientes para capturar, por si só, as inconsistências nas demonstrações da Americanas. Os bancos disseram ainda que reportaram as operações de risco sacado no Sistema de Informação de Crédito (SCR) do Banco Central e que, na condição de credores da varejista, foram amplamente prejudicados pelas inconsistências, que levaram a empresa à recuperação judicial.
Os credores bancários da Americanas tinham exposição de cerca de R$ 24 bilhões em dívidas. Nas negociações para salvar a companhia, converteram R$ 12 bilhões em ações e o restante foi reestruturado com deságio.
Procurado pelo Valor, o Itaú Unibanco disse que “a padronização da forma como as informações são apresentadas pelos bancos no memorando de oferta pública é normal e tem como objetivo facilitar seu entendimento pelos investidores”. Segundo o banco, “como fica claro nas trocas de mensagens as informações sobre risco sacado – ‘antecipação a fornecedor’ é a forma tecnicamente correta para denominar esse tipo de operação -, incluindo valores e taxas, constam no memorando”. “Vale reforçar, ainda, que a elaboração desse documento envolve a atuação não apenas dos bancos, mas também de escritórios de advocacia, e é acompanhada e certificada por auditoria externa.” Para o Itaú, não há qualquer anormalidade no processo e nas mensagens relativas a ele.
O Santander afirmou que “não possui ingerência, supervisão ou responsabilidade sobre as demonstrações financeiras da Americanas, que a própria companhia informou, em fato relevante de 13/06/2023, terem sido fraudadas pela diretoria anterior”. O banco acrescentou que sempre informou os saldos das operações da empresa ao SCR, “que é uma entre as possíveis fontes de auditagem, além das cartas de circularização – e mesmo estas não mantêm relação de causalidade com as fraudes, que estavam pautadas, principalmente, utilizando contratos comerciais fictícios com fornecedores, conhecidos como Verba de Propaganda Cooperada (VPC), por meio dos quais a companhia reduzia seus custos artificialmente e ampliava os lucros. Sendo assim, o Santander repudia qualquer insinuação contrária à lisura e correção em sua relação com a empresa, tendo sido também vítima das fraudes.”
O Bradesco reiterou “que exerce suas atividades em absoluta consonância com as diretrizes normativas e regulatórias, já tendo apresentado aos órgãos reguladores as informações requisitadas sobre o caso. Qualquer tentativa de confundir a opinião pública a respeito do caso deve ser repudiada”.
O Bocom BBM disse que “na data do pedido de recuperação judicial das Lojas Americanas, a única exposição ao grupo era menos de R$ 4,2 milhões, decorrente de uma operação de crédito para a empresa Hortifruti, que foi posteriormente incorporado pela Americanas em 2022”.
BB, Fibra e ABC Brasil não se manifestaram. As defesas da antiga diretoria não comentaram o assunto. (Colaborou Álvaro Campos)