Como a primeira mulher à frente do grupo Iguatemi pretende fazer de um shopping a praia do carioca
O Maison Revka, em Paris, é daqueles símbolos exóticos na paisagem tradicional da culinária francesa. Carrega uma atmosfera familiar e algo sisuda, tal qual o 16º arrondissement onde a família fundadora, de origem eslava, fincou os pés e o restaurante. Ali, caviar, pavlovas e “cods” convivem em harmonia com as receitas locais, um menu miscigenado que, em uma noite de janeiro, ilustrou o que Cristina Betts, de 54 anos, parecia querer dizer aos convidados de seu jantar: Brasil e luxo podem combinar num mesmo prato.
A julgar por quem sentou à mesa naquela noite, ela conseguiu. Sua lista incluía o chairman da divisão de moda do grupo LVMH e braço direito de Bernard Arnault, Michael Burke, e sobrenomes autoexplicativos do luxo, entre os quais Domenico Dolce, uma das metades da Dolce & Gabbana, e Christian Louboutin.
Primeira mulher no comando da Iguatemi S/A e, desde a fundação da companhia, única regente fora do clã fundador, a família Jereissati, a alcançar o posto de CEO da companhia, Betts marcou de vez o nome do país, e da rede homônima de shoppings, no imaginário das grifes estrangeiras.
Servimos como incubadora, não como operadores de varejo com 50 e tantas marcas”
— Cristina Betts
Uma tarefa que nunca foi fácil, ela sabe. “Brinco que o Brasil é ‘final frontier’ para elas [as grifes], tipo ‘Star Trek’ mesmo”, brinca a executiva agora neste “À Mesa com o Valor” num restaurante tipicamente brasileiro, nos fundos da filial da churrascaria Rodeio no Iguatemi São Paulo.
A “fronteira final” dessa “jornada nas estrelas” citada por ela, uma referência ao quinto filme da franquia de ficção científica, seria porque “os caras já estão na Ásia, em todos os países da Europa e nos Estados Unidos. O Brasil é muito longe [geograficamente], tem toda a parte da alfândega, que é complexa, e uma legislação tributária diferente”.
“Lembro de um executivo que queria abrir lojas no Iguatemi e no JK [o irmão mais novo da rede em São Paulo, com 12 anos] e tentei explicar que, mesmo separados por um quilômetro de distância, para ele levar de um ponto a outro uma mercadoria precisaria de nota fiscal”, relembra. “Ele perguntou ‘Por que, se o produto é meu?’, e eu disse: ‘Se te pegam sem, a carga é apreendida’. Claro, ele não entendeu nada.”
É difícil, segundo ela, explicar como as coisas funcionam no país. “Mas superadas as diferenças e a mudança que as marcas têm de fazer no sistema de vendas para operar, o Brasil já se provou relevante.” Betts, também.
A executiva pilotou o negócio nos piores anos da pandemia de covid-19 e entregou, no segundo trimestre deste ano, um lucro líquido ajustado de R$ 106,5 milhões. No computado do primeiro semestre, a receita líquida da companhia foi 6,1% superior à do mesmo período de 2023.
Fã de mangás e animes, Betts relaxa vendo doramas, mas não se desliga do trabalho: ‘Você percebeu que todas as marcas de luxo aparecem ali?’ — Foto: Gabriel Reis/Valor
As vendas totais nos primeiros seis meses do ano totalizaram R$ 9,26 bilhões nos 22 empreendimentos do portfólio, uma lista cujas cinco maiores receitas é liderada pelo Iguatemi São Paulo, seguido pelos Iguatemi Porto Alegre (RS), JK Iguatemi (SP), Iguatemi Campinas (SP) e Pátio Higienópolis (SP). Torres empresariais, outlets e residências complementam a rede tocada pela executiva, formada em administração pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e que, além da direção executiva da empresa, acumula cadeiras no conselho da B3 e no comitê de finanças da Votorantim Cimentos.
Nos 13 anos que passou na Iguatemi como diretora-financeira, antes de chegar ao ponto mais alto da hierarquia em 2021, Betts tornou lucrativa, ao lado do então chefe e membro do conselho de administração, Carlos Jereissati Filho, a expansão de medalhões como Gucci, Hermès, Louis Vuitton e Chanel nos endereços do shopping.
As quatro marcas ocupam parte da disputada entrada do shopping, e serão vizinhas ao ponto colossal que resultará da reforma da joalheria americana Tiffany & Co., do LVMH, a ser inaugurada em dezembro. Outras duas marcas, essas do grupo Kering, a francesa Saint Laurent e a espanhola Balenciaga, também ganharam tração no país por meio da dupla.
A Balenciaga foi uma aposta considerada de risco em 2019, devido ao perfil fashionista demais da grife, e aportou por meio do braço de varejo da companhia, o i-Retail. Agora, já com operação própria no país e fora do guarda-chuva de varejo do shopping, a marca inaugurou no mês passado um ponto que toma quase um quarteirão inteiro, na frente da primeira loja da grife francesa Loewe na América Latina, aberta em abril deste ano.
“Temos [no i-Retail] essa vocação de apresentar o mercado às marcas desde quando iniciamos a operação do Christian Louboutin [em 2009, cerca de um ano após a chegada de Betts à companhia]. Às vezes, uma marca não está preparada comercialmente para andar sozinha no país, mas está num momento bom. Servimos como incubadora, não operadores de varejo com 50 e tantas marcas. Se em um, dois, três, quatro anos, a marca pode andar só, ‘great’, fizemos a introdução.”
No pujante mercado da perfumaria de nicho, o primeiro ponto da Le Labo na América do Sul será inaugurado em outubro, também no Iguatemi São Paulo. A marca americana, de propriedade do grupo Estée Lauder, é tida como uma das mais exclusivas da indústria.
Seus frascos, cujas fragrâncias são envasadas na hora da compra em parte das lojas, carregam matérias-primas nobres e ultrapassam os R$ 2 mil na conversão de preço com impostos. Cada capital dos países onde a Le Labo se instala ganha uma fragrância exclusiva, vendida apenas naquele local. Em São Paulo, não deverá ser diferente.
Cris, como é chamada no mercado, com Pedro Jereissati e Carlos Jereissati Filho, da família fundadora da Iguatemi S/A — Foto: Arquivo pessoal
Tranquila sobre os rumos da companhia, Betts diz não se preocupar com a concorrência que o principal shopping da rede terá na mesma avenida Faria Lima, com o início das obras do Shops Faria Lima, o novo empreendimento do JHSF construído em parceria com a XP Malls.
“É muito pequeno, não dá concorrência [com o Iguatemi]. Estamos falando aqui de 50 mil m2 de ABL [área bruta locável]”, diz ela, comparando o local que dirige ao futuro espaço de 8,5 mil m2 que também pretende ser endereço de grifes nacionais e estrangeiras.
“Para nós, é importante ser um lugar onde o cliente resolva a vida. Eu, particularmente, sempre gostei de comprar, então isso aqui é um paraíso”, diz Betts. “As pessoas que trabalham conosco precisam dessa paixão. Eu mesma passo [pelos corredores] vendo se tem papel no chão. Se uma flor está fora do lugar, vira uma crise”, conta a empresária, entre risos e uma ponta de seriedade.
Estar atenta aos movimentos do mercado de moda, beleza e artigos pessoais, segmento com a maior área locada nos shoppings da rede, é parte do trabalho de Cristina Betts. A intimidade necessária com os pormenores dessa indústria, que abre os olhos do consumidor de classe média e alta renda, foi construída com o tempo.
“Quando entrei, eu lia todas as revistas de moda no trabalho, e ainda leio, mas bem menos. O hábito te dá um pouco mais de ‘feeling’ sobre o que está acontecendo, quem são os novos designers, e isso sempre tem uma conexão direta com os números [resultado operacional]”, afirma Betts. “Qualquer negócio opera com desejo, mas, no nosso caso, é preciso ter esse ‘tapa’, esse cheiro para novidade, para a resposta vir lá no final.”
É uma resposta que pode ser ilustrada pela taxa de ocupação da rede, que atingiu recorde de 95% no último trimestre, num cenário em que o valor dos aluguéis, no compilado de 2023, cresceu 10,1%. Ou, também, na procura frenética de interessados num pedaço de chão próximo das grifes de luxo, um dos motivos que justificam a ampliação do Iguatemi São Paulo, cujas obras estão previstas para 2025.
Trajada com um casaco de jacquard da estilista brasileira Fernanda Yamamoto, que guarda “há vários anos”, porque “isso é luxo, né? Ter algo que dure e possa ser passado adiante”, Betts não usa maquiagem (“Nunca gostei”), como quem busca transmitir a beleza natural. “Carlos [Jereissati Filho] diz que meu estilo foi uma construção. Pode ser”, afirma.
Ela relembra o início da carreira, no extinto Banco Garantia, onde era a única mulher no meio dos colegas homens e, como num rito de proteção ainda comum às mulheres no mundo corporativo, mimetizava o que eles vestiam. “Se estavam de ‘docks’, eu calçava, se estavam de camisa, eu usava. Até comprava roupas na Richards, para você ter uma ideia”, diz Betts, citando a marca carioca de moda masculina casual e famosa entre homens abastados.
A cada 15 dias, Betts encontra uma pausa na agenda de trabalho para descansar com as filhas e o marido na casa da família em Monte Mor — Foto: Arquivo pessoal
“Era, sim, uma forma de me posicionar. Pelo lado da carreira, o fato de ser mulher nunca pesou contra mim”, explica ela, sem dar voltas no assunto. Direta, Betts não é de complicar as coisas.
Enquanto lemos o cardápio, após o alerta da diretora de marketing do Iguatemi, Vivi Simões, de que o tempo de entrevista corria sem comida na mesa para além do pão de queijo servido como entrada, Betts tinha pronta a resposta desde o início: “Meia picanha. É o que sempre peço. E podemos dividir, se pedirmos uma”.
Ela dividiu, inclusive a salada que acompanhou o prato, devidamente livre do palmito que diz ser uma das poucas coisas que não gosta de comer. “E azeitona, detesto, não consigo.” Nem na pizza? “Já peço sem”, diz, na única vez da conversa em que subiu o volume da risada.
O tom comedido da fala, o sorriso sempre presente e a educação britânica no trato – o sobrenome Betts revela a origem inglesa da família – conferem a Cris, como é chamada pelo mercado e por sua equipe, a imagem de alguém que transmite um tipo de segurança conjugada à informalidade, cabal num negócio que lida com públicos de origens distintas.
Ela percebe o sotaque do repórter, e, ao ouvir que este nasceu no Recife, emenda: “Ah, então você é da área do JCPM”, brinca Betts, citando o acrônimo do empresário João Carlos Paes Mendonça, que dá nome ao grupo imobiliário fundado por ele, que é dono do Rio Mar, uma espécie de Iguatemi da capital pernambucana também focado na alta renda.
A referência dela aos supostos domínios delineados pelo negócio dos shoppings centers tem a ver com a estrutura, formatada ao longo dos anos, que deu a empresas familiares as chaves do cofre do consumo nacional. Após a oferta pública de ações do Iguatemi, em 2007, e a consequente consolidação dos players, o mercado “está cada vez menos pulverizado” e “continuará nesse processo que, nos Estados Unidos, já está mais avançado”, afirma a executiva.
As apostas de Betts, portanto, concentram-se menos na abertura de novos centros comerciais e mais na melhora dos que já existem, com oportunidades nos entornos, e naqueles em que a companhia pode abocanhar outras praças. É nesse contexto que o Rio de Janeiro terá nova praia. Num acordo conjunto com a gestora BB Asset, a companhia passou a deter 16,6% das ações do Rio Sul, shopping localizado em Botafogo e o mais antigo da cidade, que passa a ser operado pelo Iguatemi.
O negócio já foi autorizado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), no mês passado e, agora, o fundo BB Premium Malls passará a ter 33,3% do empreendimento e a Companhia Brasileira de Shoppings Centers (Combrashop), por sua vez, os 50,1% restantes. Haveria, porém, espaço para que uma “praia de paulista”, como o apelido carioca define os shoppings, vire ponto de encontro em meio às praias mais famosas do país?
“Comprar é aspiracional, todo mundo gosta. A pergunta é quais as marcas que fazem sentido no Rio de Janeiro, e acho que dá para ter lojas com uma oferta de produtos diferente e que faça sentido para o clima e o perfil da cidade”, afirma.
Betts acrescenta que “o Rio sempre esteve no radar [desde 2012, quando a companhia se desfez do então Iguatemi Rio, no bairro de Vila Isabel], mas ali você tem a Barra [da Tijuca], dominada pela Multiplan [do shopping Village Mall]. Se formos capazes de levar marcas inéditas [ao Rio Sul], e temos potencial para isso, puxamos até o pessoal que transita ali entre Ipanema e Leblon”, diz, referindo-se ao fluxo de pessoas em outro centro de compras da zona sul, o Shopping Leblon.
O planejamento para novas empreitadas passa pela avaliação do potencial de consumo de determinado local. “A questão é sobre quantas cidades no Brasil comportam um Iguatemi, e não exatamente a região. Quantas Ribeirão Preto, quantas Campinas existem? O Rio é o segundo mercado consumidor do país, há espaço”, diz. “Agora, se pensarmos em Belo Horizonte, ela está bem servida com três [shoppings de perfil similar aos da rede]”, conta. “Olha o que fizemos em Porto Alegre. Levamos Gucci e Louis Vuitton, e a Tiffany já tem interesse de ir para lá.”
O Rio, portanto, deverá passar ao topo da lista dos destinos que, ao menos duas vezes ao ano, Cristina Betts visita para conferir obras e reformas. “É importante as equipes se sentirem próximas, e ao vivo tudo é diferente.”
A cada 15 dias ela encontra pausas na agenda de reuniões nas viagens de trabalho para descansar com as três filhas e o marido na casa da família no Haras Larissa, em Monte Mor, a 100 km de São Paulo. É lá que consegue exercer sem culpa a paixão de “ler bastante, de tudo, até receitas [de pratos de comida]”.
“Acabei de baixar todas as peças do [irlandês] Bernard Shaw, que eu amo. Também sou fanática por poesia de guerra, que estudei muito na escola [britânica], e, com o tempo, também criei uma fixação por quadrinhos e mangás. Costumo comprar [impressos]”, diz.
Ela conta que “essa coisa do mangá levou aos animes e, agora que tudo está no streaming, aos produtos coreanos”. E doramas? “Sim, eu gosto”, ri Betts, algo tímida com a confissão. Diz, no entanto, assistir sozinha às novelas asiáticas de roteiro adocicado que caíram no gosto dos brasileiros porque “essas, ninguém [da família] quer ver comigo”.
“Às vezes é tão bom voltar para casa cansada e ver algo leve, sabe? Você percebeu que todas as marcas [de luxo] aparecem ali?”, justifica, vendo o próprio ofício no hobby curioso.
O Brasil está para a América Latina assim como a Coreia do Sul está para a Ásia quando se trata da cruzada do luxo em desbravar novos territórios para, por meio do consumo dos nativos, mitigar a dependência dos líderes em compras da China, Europa e dos Estados Unidos, sendo os resultados dos dois últimos fortemente influenciados pelas compras dos turistas.
Para Betts, não há um teto definido na curva ascendente do negócio dos shoppings de alto padrão no país. “Se são verdade as projeções para a economia, com aumento no poder de compra, e se é verdade que o Brasil vai subir [no ranking das maiores economias do mundo], os shoppings naturalmente acompanham. No nosso caso, também temos um cliente que sofre menos com movimentos inflacionários e quedas bruscas na economia.” A julgar pelo prognóstico, a mesa de Betts continuará movimentada de convidados ilustres por muito tempo.