As vendas do varejo começaram o ano muito bem, obrigado. Segundo dados do IBGE, em janeiro elas tiveram um crescimento muito acima das expectativas. O mesmo aconteceu no mês de fevereiro e, até em março, quando o volume apresentou uma estabilidade, ele surpreendeu positivamente ao vir acima das projeções. Recentemente, outra notícia positiva para o setor: a taxação das compras feitas em concorrentes “gringas”, como Shein e AliExpress segue em discussão e deve ser aprovada no Congresso. No entanto, pouco (ou nada) disso se refletiu positivamente nas ações de varejistas na bolsa. Dos 21 papéis do segmento, apenas quatro registram alta no ano, até o dia 5 de junho. Desse total, 12 caem mais de 20% no período.
Em meio a escândalos contábeis e pedidos de recuperação judicial e extrajudicial, gigantes do setor precisam fazer o famoso “grupamento de ações” após seus papéis serem negociados a valores muito baixos. Isso significa, portanto, que não vale a pena investir no varejo brasileiro? Ou existem oportunidades em meio a esse caos? Segundo analistas, há boas opções, especialmente entre as ações mais “conservadoras”, mesmo em meio a um setor naturalmente mais arriscado. Encontrá-las, no entanto, não é uma tarefa fácil e exige pesquisa por parte do investidor.
Por que as ações não sobem?
No fim de 2023, com a perspectiva de que a Selic continuasse em processo de queda neste ano, o varejo era apontado como um dos principais setores que se beneficiariam dos juros menores. Afinal, além de os juros mais baixos incentivarem que as pessoas saiam às compras (o que, obviamente, aumenta a receita dessas companhias), a Selic menor também teria um impacto positivo no resultado financeiro dessas empresas. Isso porque as companhias desse segmento costumam ser mais alavancadas (ou seja, endividadas, no jargão econômico). Assim, com juros mais baixos, elas passam a ter um alívio também em suas contas. No entanto, nove meses depois do ciclo de queda de juros se iniciar, o reflexo positivo dele não foi sentido nas varejistas.
Apesar da melhora do cenário macroeconômico, com inflação e juros mais baixos e mercado de trabalho forte, Ruben Couto, principal analista de varejo do Santander, destaca que existe um indicador macro que “joga contra” o varejo: o endividamento das famílias.
“Apesar das variáveis positivas estarem acontecendo, a alavancagem das famílias ainda está alta quando olhamos para o patamar histórico, apesar de estar caindo. Nos últimos três meses, o índice de endividamento está parado. Na medida que esse peso no orçamento das famílias começar a diminuir, aí sim deveria começar a fluir para mais consumo. Mas isso está evoluindo de forma bem devagar“, afirma o especialista.
De fato, a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), apurada mensalmente pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) mostrou que a proporção de famílias endividadas ficou em 78,5% em abril. O número veio bem parecido com o patamar de março, quando era 78,1%, e também é semelhante ao de abril de 2023, quando era 78,3%.
Um outro ponto citado por Couto que atrapalhou as empresas do segmento nos últimos tempos, foi a “concorrência” que elas ganharam. Segundo o analista, além das varejistas brasileiras passarem a concorrer com empresas estrangeiras (uma vez que e-commerces como Amazon, Shein e AliExpress vêm ganhando força), elas também concorrem com outros tipos de gastos mais “inusitados” por parte dos clientes, como os sites de apostas.
“A gente ouve bastante sobre o quanto novos hábitos de consumo passaram a fazer parte do dia a dia do brasileiro, como sites de apostas, compras em sites internacionais. São outras fontes competindo pelo mesmo dinheiro, que ainda está ‘amassado’, ou seja, que sobra pouco“, afirma.
É bem verdade que recentemente uma notícia trouxe um certo alívio para o segmento neste sentido. No último dia 28 de maio, o governo federal fechou acordo com todos os partidos para taxar em 20% de imposto de importação as remessas internacionais de até US$ 50, que hoje são isentas. O projeto ainda segue entre idas e vindas no Congresso, mas a expectativa é que ele seja aprovado. É importante destacar que os impostos não sairão diretamente do bolso dos consumidores. As lojas estrangeiras que serão taxadas. No entanto, elas podem optar por “repassar” esse custo aos consumidores a fim de não perder suas margens, o que pode levar a um aumento do preço dos produtos anunciados nelas e fazer com que as brasileiras ganhem mais competitividade. Mas, segundo analistas, os efeitos disso podem ser reduzidos.
“O impacto é positivo para as empresas varejistas brasileiras dado que estava tendo muita compra internacional por valores pequenos, no varejo de vestuário, mas também em pequenos produtos eletrônicos e tudo mais. Mas o impacto é um pouco limitado. Primeiro, porque as pessoas podem achar um jeito de burlar um pouco isso, não declarando que é uma compra ou coisa desse tipo. E um outro fator é que vimos, ao longo do tempo, que outras coisas atrapalharam um pouco os resultados do varejo. Portanto, essa mudança vem em um momento em que esse assunto da concorrência não era a preocupação número um do setor“, afirma Fernando Siqueira, chefe de análise da Guide Investimentos.
Segundo o especialista, além do endividamento das famílias, outra questão importante que entra nessa lista de preocupações do varejo e pode dificultar ainda mais o segmento neste momento é a mudança nas expectativas em relação aos juros.
Para quem não se lembra, no fim do ano passado, havia uma forte aposta de que a Selic cairia bastante nesse ano, especialmente porque imaginava-se que os Estados Unidos também cortariam os juros por lá. No entanto, não foi o que aconteceu. Nos EUA, dados macroeconômicos fortes trouxeram mais pressão inflacionária e os juros seguem em patamares recordes. Por aqui, o Banco Central tem mostrado cada vez mais preocupação com a inflação e, com isso, o ritmo de quedas da Selic diminuiu. E o pior: não se sabe até quando ela deve cair.
“Por mais que pareça que juros estarem caindo é algo bom, o que interessa mais são as expectativas sobre os juros no futuro. E no ano passado, a expectativa era de uma queda muito agressiva e isso foi sendo revisto, o que explica a reação negativa nesse setor”, afirma Siqueira, da Guide.
Trocando em miúdos, a ideia de que os juros fiquem em patamares mais elevados do que era esperado no ano passado faz com que o mercado já se antecipe, imaginando que o varejo não estará tão bem quanto era imaginado antes. Afinal, a queda de juros não será suficiente para “desafogar” o caixa das empresas (nem das famílias), tampouco para incentivar a volta do consumo de maneira mais intensa.
Pedro Serra, chefe de análises da Ativa Investimentos, concorda que as mudanças de projeção para a Selic deram outro tom não só para as ações do varejo, mas para a bolsa como um todo. “As ações em bolsa, refletem na maior parte das vezes a expectativa futura. Antes, esperava-se que a Selic iria para a casa dos 8,75%. Agora, o mercado espera 10,50% ao ano. E o que causou essa revisão da Selic foi uma expectativa de inflação mais alta, um cenário fiscal pior, e isso reflete bastante no mercado“, diz.
Casos isolados afetam o todo?
É bem verdade que os desafios macroeconômicos também trouxeram problemas pontuais, como foi com Americanas (que, há pouco mais de um ano anunciou um rombo contábil de US$ 20 bilhões e recentemente precisou fazer um grupamento de ações e aumento de capital), Casas Bahia (que recentemente anunciou uma recuperação extrajudicial e um grupamento de ações) e Magazine Luiza(que também precisou fazer um grupamento de ações após seus papéis serem negociados a pouco mais de R$ 1). Os especialistas, no entanto, divergem sobre o quanto esses casos isolados impactaram o varejo como um todo.
Para Pedro Serra, da Ativa, a fraude fiscal da Americanas ajudou a afastar investimentos do segmento, pelo menos em um primeiro momento. Isso porque, segundo o especialista, investidores passaram a se questionar se outras companhias teriam os mesmos problemas. Ele destaca, no entanto, que foi um temor momentâneo.
“A situação da Americanas foi um susto, ninguém esperava uma fraude. E muitas pessoas pensaram que se uma das empresas do segmento estava ruim, outras também poderiam estar, mas foi um pouco passageiro”, afirma.
O analista destaca, contudo, que o varejo é um setor mais sensível ao cenário macroeconômico e ao que acontece na economia doméstica e, por isso, tende a sofrer mais quando acontece alguma crise. Se tiver uma questão mais séria na economia, algumas dessas empresas podem fechar as portas, não é igual a um banco, a exportadoras de commodities“, diz.
Siqueira, da Guide, acredita que o “efeito Americanas” foi mais limitado. Ele concorda, no entanto, que o cenário macroeconômico não é favorável e, por isso, as pessoas tendem a evitar os investimentos nesse segmento, especialmente em momentos de liquidez mais baixa.
Ainda assim, há quem acredite que os problemas pontuais enfrentados por essas companhias podem fazer delas uma oportunidade. Afinal de contas, são empresas robustas que tiveram uma forte desvalorização de suas ações. Couto, do Santander, afirma que tudo depende de como será a condução da recuperação dessas empresas daqui em diante. Ainda assim, ele pondera que pode ser difícil que essas companhias tenham fôlego para subir e voltarem a atingir determinados patamares como foi no passado.
“Tudo vai depender do que vai acontecer com o lucro dessas empresas. O que elas estão fazendo de reestruturação, vai virar crescimento de lucro, geração de caixa, quando o mercado voltar a se recuperar?”, questiona o especialista. “O que precisamos tomar cuidado é que o investidor pessoa física às vezes olha quanto a ação da empresa já valeu e achar que pode voltar, mas não dá pra fazer esse tipo de comparação, até por conta do cenário macroeconômico mesmo, olhando a taxa de juros atual. Esse crescimento que vimos dessas companhias no passado, acho difícil vermos acontecer de novo tão cedo“, afirma.
Onde, então, estão as oportunidades?
Segundo os analistas, apesar do cenário conturbado, isso não quer dizer que não existam boas oportunidades no varejo. Cabe ao investidor, no entanto, garimpa-las. Para os especialistas, o investimento no setor agora deve ser feito muito mais voltado para “casos específicos” do que para o todo.
Não à toa, as empresas que registram alta no ano até agora, tiveram esses resultados por conta de particularidades, seja de seus balanços ou de movimentos de negócios, como fusões ou aquisições.
A C&A, por exemplo, tem alta de 24,01% em 2024 o que, segundo os analistas, é explicado por um “acerto de coleção e melhora na comunicação”, frutos de uma mudança na gestão que permitiu que a empresa entregasse bons resultados. O mesmo aconteceu com a Guararapes (dona da Riachuelo), que registra alta de 11,95% no ano até agora. Segundo Siqueira, da Guide, neste caso a companhia melhorou “bem mais sua parte financeira do que nas vendas em si”, o que ajudou nos resultados da empresa.
Bons resultados também foram o que impulsionou a alta do Grupo Mateus, que tem valorização de 9,10% das ações neste ano. Segundo os analistas, por ser mais focado no Nordeste, a companhia consegue traçar estratégias mais específicas.
A outra alta foi da Mobly, com 2,96% de valorização. Segundo especialistas, muito disso veio com a notícia de uma possível fusão com a Tok&Stok, que acabou não se concretizando.
Dentre essas, Rubem Couto, do Santander, tem apenas uma entre as “favoritas” deste momemto: o Grupo Mateus. Isso porque, para o especialista, as melhores apostas para esse momento são as companhias de consumo básico, justamente por não dependerem tanto de um cenário doméstico favorável.
“O que gostamos aqui e temos recomendado é essa dinâmica do consumo básico: alimentos, farmácia, e isso tende a continuar no restante do ano”, afirma. “As empresas que caem nesse grupo como RaiaDrogasil, Assaí, Carrefour, Grupo Mateus têm perfil mais defensivo, mas é um tipo de postura que gostamos e achamos prudente seguir nessas posições”, afirma. “Adiciono junto a essas uma outra ação que tem um perfil um pouco mais discricionário, mas que gostamos bastante, que é a Smartfit, que tem uma visibilidade em termos de crescimento”, diz. As favoritas, segundo o especialista, são Grupo Mateus, Smartfit e RaiaDrogasil, que apesar não entrarem na categoria do “varejo” propriamente dito, também são companhias ligadas ao consumo.
Serra, da Ativa, afirma que se o cenário fiscal não virar “uma encrenca” e atrapalhar a economia local de forma intensa, as melhores oportunidades são as ações de Lojas Renner e também do Mercado Livre (que embora não seja listado na bolsa brasileira, pode ser comprado por investidores locais por meio dos Brazilian Depositary Receipts, os BDRs).
“As Lojas Renner têm um valor no longo prazo, talvez não no curto. Mas pode entregar um bom resultado e recuperar um pouco do seu valor. O trimestre pode não ser brilhante, mas no horizonte mais longo, tem marca e tem tamanho para se recuperar”, diz. Além dessas, o especialista também destaca que companhias voltadas para um público de renda mais alta, como Arezzo e Soma, que devem se fundir em breve.
“A alta renda aguenta mais desaforo. Se o preço dos itens subir 50%, a companhia não vai deixar de vender. A baixa renda vai, o consumidor vai comprar na liquidação, porque é mais sensível a preço de fato”, diz. “Mas se estivermos falando de uma melhora do mercado como um todo, é bom olhar para empresas que sejam de público misto, como a Renner”, diz.
Siqueira, da Guide, concorda que Renner é uma boa opção, especialmente porque ela “tem dado sinais de melhora no operacional e no financeiro”. Outras companhias que o especialista também recomenda são o Grupo Mateus e o atacarejo Assaí.
“Por ser uma companhia ‘small cap’ (ou seja, de menor capitalização), a ação do Grupo Mateus é mais barata também. Com o mercado mais seletivo, os investidores tendem a preferir empresas maiores, mas isso não tem sido um grande empecilho para ela”, diz. “O Assaí também gostamos. Temos idas e vindas (da ação na carteira recomendada), mas é um nome mais defensivo, se os juros caírem pouco, a empresa não é tão afetada. Se a inflação vier maior, também é bom pra eles”, diz.
Seja como for, o que os especialistas concordam é que as indicações virão muito mais baseadas na “história” de cada companhia do que no segmento como um todo. Assim, é preciso que o investidor faça seu “dever de casa” ao buscar o máximo de informações possíveis sobre cada empresa, bem como seus resultados e planos para o futuro.