O aumento da formalização e um melhor perfil educacional dos empregados são novidades positivas no mercado de trabalho brasileiro que explicam parte relevante da elevação real recente da renda, apontam pesquisadores do Instituto Brasileiro de Economia (FGV Ibre).
“Nota-se que a recuperação do mercado de trabalho no período pós-pandemia exibe alguns aspectos muito positivos, como o protagonismo do mercado formal – numa evolução notável ante a recuperação pós crise de 2014-2016, puxada pelas ocupações informais – e a melhora da composição educacional da mão de obra, levando à ampliação da renda”, resume Luiz Guilherme Schymura, diretor do FGV Ibre, na carta de maio do instituto antecipada ao Valor.
O rendimento habitual real do trabalho subiu de um mínimo de R$ 2.756 no último trimestre de 2021 para R$ 3.123 no primeiro trimestre de 2024, alta de 13%. Nesse último trimestre, o crescimento do rendimento habitual real em 12 meses foi de 4,7%, com alta de 4% ante o mesmo trimestre do ano anterior.
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Olhando para um período ainda mais focado, porém, do quarto trimestre de 2023 ante o quarto de 2022, os pesquisadores do FGV Ibre observaram que 37,4% da alta da renda real derivou de uma melhora educacional.
Ou seja, nem toda a alta da renda veio do aumento do salário real para um trabalhador do mesmo nível de educação, mas refletiu também o fato de que, em média, há mais trabalhadores mais escolarizados (em geral, com ensino médio ou além) no mercado de trabalho.
Se a composição educacional dos trabalhadores fosse fixada no padrão do quarto trimestre de 2019, o rendimento habitual médio seria de R$ 2.889 ao fim de 2023, enquanto os indicadores oficialmente divulgados apontam R$ 3.032. “Sem os ganhos de escolaridade do último ano, na verdade, o salário ainda estaria um pouco abaixo do nível pré-pandemia”, observa o pesquisador Fernando de Holanda Barbosa Filho.
Em um primeiro momento de retomada após a queda drástica da população ocupada provocada pela pandemia, os empregos informais, que haviam sido os mais afetados pela crise sanitária, foram os de maior recuperação. Em seguida, entre meados de 2021 e meados de 2022, os empregos formais e informais dividiram o protagonismo, mas, daí em diante, o grande destaque foi o avanço dos postos de trabalho formais, apontam os pesquisadores.
Assim, ao fim do primeiro trimestre deste ano, enquanto o número de empregos formais estava 9,4% acima do nível pré-pandemia (fevereiro de 2020), os informais cresceram 4,9% no período.
Os pesquisadores notam que essa configuração da recuperação da crise sanitária contrasta fortemente com o ocorrido após a recessão de 2014-2016, quando a perda de postos de trabalho na crise se deu mais no setor formal e a retomada foi puxada pelos informais.
“A dinâmica pré-pandemia era completamente informal, de uma economia que saiu da crise de 2014-2016 demitindo o pessoal formal e eles não voltavam. Tinha uma dinâmica de demissão formal e contratação informal”, diz Barbosa Filho. “Talvez, a gente esperasse que, depois da pandemia, fosse voltar para essa dinâmica, mas o que nós vemos são as ocupações formais subindo mesmo no pós-covid e se mantendo, então, o que parecia uma recuperação, pode estar sinalizando uma nova dinâmica mesmo”, afirma.
Os pesquisadores calcularam que, entre o quarto trimestre de 2016 e o mesmo período de 2019, ou seja, aproximadamente três anos após o fim da recessão de 2014-2016, o crescimento da população ocupada foi de 5,9%. Disso, 4,1 pontos percentuais foram de empregos informais, e apenas 1,9 ponto percentual, de formais. Nesse período, as ocupações com carteira assinada, em particular, ofereceram uma contribuição negativa à população ocupada.
Por outro lado, na recuperação pós-pandemia (entre o quarto trimestre de 2022 e o primeiro de 2024), o crescimento da população ocupada era de 4,7%, sendo que o avanço foi explicado de forma praticamente integral pelo emprego formal e, principalmente, com carteira assinada, apontam os pesquisadores.
“É uma dinâmica completamente nova e que chama bastante a atenção”, afirma Barbosa Filho. “O conta própria com CNPJ é importante, mas o que é determinante é o trabalhador com carteira. De fato, é uma mudança de geração de vínculo formal de trabalho que predomina como explicação”, diz.
Dados do Caged (base do Ministério do Trabalho para os contratos com carteira assinada), reforçam a percepção de bom desempenho do mercado formal. A geração de vagas acumulada no primeiro trimestre de 2024, de 719 mil, tem surpreendido, segundo os pesquisadores. No mesmo período de 2021, foram criadas 806 mil vagas, por causa da retomada forte pós-pandemia, mas, com a normalização da situação sanitária, esse número vinha desacelerando no primeiro trimestre de 2022 (621 mil postos) e no de 2023 (537 mil).
Barbosa Filho cita ainda que, entre os trabalhadores com carteira, os desligamentos a pedido têm aumentado, o que também pode ser um sinal de força do mercado de trabalho. “As pessoas estão vendo oportunidade de trocar de emprego, mudar para uma posição melhor”, afirma.
Para os pesquisadores do FGV Ibre, o fato de a reação do emprego formal acontecer não muito depois de promulgada a reforma trabalhista de 2017 é um indício de que as novas regras foram bem-sucedidas no propósito de estimular o mercado de trabalho. “Muitos questionavam onde estavam os impactos da reforma trabalhista. Surpreendentemente, após a pandemia, começamos a ver vários resultados interessantes”, diz Barbosa Filho.
Ele cita um estudo de 2022 de pesquisadores da USP e do Insper que indicou, por exemplo, a expansão do emprego formal em função da redução do número de processos na Justiça do Trabalho decorrente da reforma.
A ideia, explica o pesquisador Fernando Veloso, não é tanto que a reforma trabalhista impactou novos contratos, mas a redução dos custos com o trabalhador e segurança jurídica que ela trouxe para os contratos existentes deixou os empresários mais confiantes na realização de novas contratações com registro.
O contrato intermitente, criado com a reforma, por exemplo, representou apenas 2,9% do saldo formal de empregos no primeiro trimestre de 2024, o que é “realmente uma parcela pequena”, diz a pesquisadora Janaína Feijó.
Veloso pondera que, quando fala do efeito de reformas sobre o emprego formal, não está se referindo apenas à trabalhista. “Tudo que aconteceu nos últimos anos no mercado de crédito, com a TLP [taxa de mercado do BNDES], a expansão do mercado de capitais, isso gera crescimento das empresas, que contratam mais com carteira assinada”, diz.
Outra evidência da expansão do mercado de trabalho formal está, segundo os pesquisadores, no aumento dos pedidos de seguro-desemprego no Brasil, que saltaram de um mínimo de 5,9 milhões em julho de 2021 para 7,2 milhões em março de 2024. Barbosa Filho observa que a fração de pessoas pedindo o seguro-desemprego entre todas aquelas que poderiam pedir também está subindo.
Diferentemente do que acontece em outros países, em que um aumento do seguro-desemprego indica fragilidade no mercado de trabalho, no Brasil o benefício é pró-cíclico, ou seja, os pedidos sobem quando a economia se aquece, explicam os pesquisadores.
“A razão é que, quando os trabalhadores percebem que o mercado de trabalho está robusto, há tendência a pedirem demissão para buscar melhores oportunidades. Evidentemente, há um problema de desenho do programa, mas isso seria tema para um outro artigo”, comenta Schymura na carta.
Em termos de repercussões do emprego forte na inflação, Barbosa Filho pondera que “certamente é uma notícia melhor” que esse avanço do mercado de trabalho esteja se dando com uma mudança na composição educacional.
“Se mantivesse a mesma composição, teríamos simplesmente um aumento de renda espalhado, talvez, sinalizando esgotamento do processo de aumento das pessoas ocupadas. Em geral, as pessoas mais educadas são mais produtivas e isso reduz um pouco da pressão sobre a inflação”, afirma.
Ainda assim, diz, os dados apontam para um mercado de trabalho em direção ao aquecimento. “Os sinais amarelos estão acesos e a gente tem de olhar em qual nível esse aumento de salários vai se estabilizar. Pelos dados em 12 meses, a variação do rendimento real parece caminhar para a estabilidade em um patamar mais elevado de 5%, o que chama a atenção e sinaliza cuidado”, afirma.
Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do FGV Ibre, observa que o aumento dos salários gera mais desconforto em um ambiente como o atual em que a ociosidade do emprego e a da economia são baixas, o consumo das famílias é resiliente e a inflação de serviços persiste, principalmente aqueles intensivos em mão de obra e cuja produtividade tem mais dificuldade de crescer.
“Há várias bandeiras vermelhas na economia brasileira”, afirma. “Não tenho certeza se conseguimos conviver com taxas de desemprego abaixo de 8% sem que isso seja preocupante.”
Os dados de produtividade do Brasil melhoraram em 2023, mas o pesquisador Paulo Peruchetti lembra que o comportamento foi parecido com 2017, sendo que nos anos subsequentes àquele houve desaceleração da produtividade. “Existem forças para um lado e para outro que geram incertezas.”
Veloso observa também que, ao mesmo tempo em que há reformas que podem ajudar as boas novidades do mercado de trabalho a não serem algo episódico, a economia global tende a ser menos favorável e a situação fiscal do país é pior que, por exemplo, no anos 2000, quando o mercado de trabalho brasileiro também ganhou ímpeto.