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Data: 28/03/2024

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Perdas contábeis em empresas de consumo e varejo atingem R$ 15,7 bilhões em 2023

Os balanços de 2023 mostram uma realidade dura para empresas que tiveram que fazer baixas contábeis no valor de seus ativos, por conta de um retorno que parecia certo tempos atrás, mas não está mais garantido.

Levantamento feito pelo Valor mostra que foram R$ 15,77 bilhões em ajustes no ano passado com ativos que perderam a capacidade de gerar rentabilidade, comparado a R$ 1,44 bilhão em 2022, um salto expressivo de 11 vezes. A comparação considera a mesma base de empresas analisadas.

A explicação desse corte está na conta do balanço patrimonial que guarda os intangíveis. Fica lá o chamado “goodwill”, o ágio que é pago numa aquisição pelos ativos da empresa adquirida que não podem ser mais facilmente avaliados, como equipamentos e terrenos.

Depois de calculado o valor justo dos ativos e dívidas registrados no balanço da empresa a ser comprada, negocia-se o “prêmio” a ser pago pelo que não está lá, mas que têm capacidade de gerar fluxo de caixa no futuro, como marcas, reputação, direitos e propriedade intelectual.

Esse ágio é registrado no balanço da compradora, porque faz parte do preço pago, mas fica separado para que, todo ano, terá que passar pelo “teste de recuperabilidade”, ou “teste de impairment”, para que se saiba se ainda conservam a mesma capacidade de gerar riqueza para seus donos.

Se não for o caso, o ativo tem que ser ajustado para que reflita a nova realidade. As baixas bilionárias registradas por algumas empresas nos números de 2023 mostram que muita coisa mudou para pior, especialmente para empresas de consumo.

No levantamento estão companhias locais e grupos estrangeiros que controlam negócios no Brasil que contabilizaram, nos balanços da matriz, baixas em ativos no Brasil. Estão na análise Alpargatas, Carrefour, Casino (até o ano passado, maior acionista de GPA), Dia, Grupo Soma e Natura. Os números foram divulgados nas últimas semanas, com a publicação dos resultados do quarto trimestre.

Os fatores que levam a esses ajustes variam caso a caso, mas há aspectos mais centrais, como a saída de investimentos, a revisão de projeções de crescimento de ativos – num cenário econômico ainda incerto – e até mesmo mudanças inesperadas em regras tributárias, no apagar das luzes de 2023, por parte do governo para tentar reduzir o rombo fiscal.

Para esse cálculo, considerou-se, além do valor dos ativos intangíveis, o fechamento de lojas deficitárias, com provável venda dos pontos, por conta da crise envolvendo o comércio após 2021. As informações constam nas notas das demonstrações financeiras.

Apesar de as empresas argumentarem que não há efeito no caixa, ou seja, sem saída de recursos – pelo menos não imediatamente -, a baixa é uma sinalização negativa para os negócios, e acende um alerta sobre decisões estratégicas equivocadas das companhias, afirma Ana Paula Tozzi, CEO da AGR Consultores, focada nesse segmento de consumo e varejo.

“No caso de Alpargatas e Natura foram baixas de aquisições que não deram certo, de expectativas que não foram realizadas. Empresas compram negócios e o ganho de sinergia calculado nem sempre vem dentro do previsto”, diz.

Além disso, com o ano muito difícil para consumo e varejo em 2023, “muitas empresas decidiram ‘passar a régua’ e baixar as perdas que vinham no horizonte de uma vez. Aí já impacta de uma vez só lucro líquido contábil e dividendos”.

Os fatores que levam a esses ajustes variam caso a caso, mas há aspectos centrais

 

Entre as companhias, as maiores perdas com impairment em 2023, até o momento, foram do Soma, de R$ 2,95 bilhões, por causa de ajustes na Hering, e da Alpargatas, de R$ 1,56 bilhão.

Lá fora, a baixa de investimento mais forte foi do ativo do GPA no balanço do grupo francês Casino, em € 1,85 bilhão, perto de R$ 9,6 bilhões (a câmbio médio do ano).

A Natura contabilizou um impairment do ágio de R$ 663,9 milhões em 2023, da compra em 2019 da Avon International, um negócio que já vem gerando baixas nos números desde 2022.

No entendimento da Natura, ela deverá recuperar um valor menor de ágio da compra da Avon pela piora na expectativa de retorno futuro. Em 2022, essa perda já foi de R$ 283 milhões, logo, cresceu quase 134% no ano passado.

A alta acabou afetando o balanço, e a Natura encerrou o quarto trimestre com prejuízo líquido consolidado de R$ 2,6 bilhões, perda 199% maior. Agora, a empresa já fala na hipótese de separar Avon (incluindo o braço internacional) da Natura Latam, como informou em fevereiro, semanas antes de publicar a baixa com Avon.

O fato de não existir uma saída de caixa com as baixas, ponto ressaltado por todas as empresas em suas comunicações ao mercado, é aspecto questionado por consultores. “Não é exatamente assim que funciona. Pode não ter efeito caixa agora, mas já teve o desembolso para pagamento da aquisição das empresas, muitas vezes com dívidas ou recursos de oferta de ações de investidores”, diz Andre Freitas de Moura, professor da FGV/EAESP e consultor especializado em “valuation”.

Além disso, Moura afirma que, se há uma expectativa de que o negócio não desempenhe tão bem, isso indica que a companhia terá que fazer outros investimentos futuros para manter sua performance prometida ao mercado. “Se não há efeito caixa agora, pode ter no futuro”, afirma ele.

Há casos de efeito do impairment acima do previsto, como ocorreu com o Soma, dono de marcas de moda como Farm, Animale, Cris Barros.

O mercado já esperava um impacto de até R$ 1,5 bilhão, mas a correção anunciada atingiu o dobro, quase R$ 3 bilhões. Em 2022, não houve esse efeito.

O problema esteve no ágio de aquisição registrado na aquisição da Hering. O principal ponto foi a publicação uma lei, em 28 de dezembro, sobre um tema que pegou o setor de surpresa quando o governo levantou a possibilidade.

A nova lei define uma mudança na metodologia de cálculo da redução do IRPJ/CSLL relativa a benefícios fiscais (como subvenção de investimentos). Ocorre que, até 2023, o crédito de subvenção era abatido do imposto de renda, reduzindo esse imposto, e, logo, aumentando o lucro líquido.

Ao se mudar o cálculo e reduzir o crédito da subvenção, cai a dedução do imposto de renda, o que afeta o lucro das companhias. O ponto é que Soma é muito dependente desses benefícios para efeito de projeções futuras.

Ainda houve impacto da aprovação da reforma tributária, diz o Soma, que extingue o benefício fiscal a partir de 2033.

Por conta da perda por impairment, o Soma informou que houve impacto em indicadores financeiros que precisam ser respeitados junto a credores.

Quando isso ocorre, os credores têm o direito de exigir o vencimento antecipado das dívidas. O Soma, então, teve que abrir negociações com todos os credores e obter perdão para um conjunto de dívidas – uma costura que foi finalizada no dia 21.

A empresa informou a analistas que a avaliação dos ativos da Hering, em termos operacionais, continua a mesma. A Alpargatas é um desses casos em que parte do valor de uma oferta de ações foi utilizado para a compra de ativos alvo de impairment no ano passado.

O lucro da fabricante de calçados foi impactado, no quarto trimestre, pelo efeito da baixa de R$ 1,6 bilhão nos investimentos feitos nas operações de Rothy’s e Ioasys, adquiridas em 2021. Em 2022, não houve nenhum efeito contábil.

Foram pagos cerca de R$ 2,7 bilhões por 49,9% da Rothy’s, marca de calçados californiana, e R$ 200 milhões pela empresa brasileira de software Ioasys.

Em fevereiro de 2022, entraram R$ 2,5 bilhões no caixa da empresa com uma emissão de ações, e boa parte foi para os pagamentos. Na época, a ação saiu na oferta a R$ 26,30, e hoje, está R$ 9,43.

Com a Rothy’s, no anúncio da transação, há menos de três anos, a ideia era dar “um passo importante na aceleração da expansão global da Alpargatas”, com “marcas desejadas e hiperconectadas”.

Nas notas do balanço do quarto trimestre, sobre a Rothy’s, a Alpargatas afirma que revisou a estratégia de crescimento do on-line frente ao resultado realizado aquém do projetado na época da aquisição. A perda por não recuperabilidade do ágio foi de R$ 1 bilhão e mais R$ 372,5 milhões do ativo intangível da marca.

No caso da Ioasys, cuja baixa foi de R$ 111,6 milhões, houve um “enfraquecimento da demanda por projetos de transformação digital para clientes terceiros”, e redução do orçamento no digital, com queda nas projeções de crescimento e rentabilidade.

Ao mesmo tempo em que anunciava as aquisições, a Alpargatas negociava a venda da Osklen para a Dass, numa operação em que a Alpargatas ficou no prejuízo.

Notas do balanço de 2022 mostram que o grupo vendeu a Osklen por R$ 118 milhões, mas o resultado final da venda, após impostos, foi um negativo de R$ 60 milhões. Uma provisão para impairment nesse valor foi feita em 2022.

Procuradas, as empresas Dia, Natura e Carrefour não se manifestaram. Alpargatas, Casino, Soma informaram que não têm mais nada a adicionar ao publicado. O Soma reforça que o impairment é um impacto não recorrente.