O varejo mais dependente do crédito, que se descolou para baixo do comércio mais ligado à disponibilidade de renda das famílias em 2022, esboçou reação no fim de 2023 e pode ter um ano melhor em 2024, apontam economistas.
Seu desempenho ainda é muito dependente, no entanto, do segmento de veículos, ponderam os analistas. Uma melhora mais generalizada vai depender da velocidade de normalização da política monetária.
Dados do Instituto Brasileiro de Economia (FGV Ibre) mostram que, em novembro de 2023, o varejo-renda avançou 0,4%, ante outubro, mas o varejo-crédito subiu 3,3% – mesmo desconsiderando o efeito de veículos, cresceu 2,5%. Em outubro, o varejo-crédito já havia subido 0,5%, enquanto o varejo-renda caiu 0,6%.
Entre empresas e associações setoriais, há indícios de alguma tomada de fôlego – apesar de existir relutância em considerar sinal de tendência, em parte, porque o consumo ainda é desigual dentro do próprio varejo de bens duráveis, dependente de crédito.
“O que vimos em novembro mudou um pouco a trajetória de 2023, em que predominou o varejo mais ligado à renda”, afirma Isabela Tavares, economista da Tendências Consultoria.
Dados da empresa de pesquisas NielsenIQ obtidos pelo Valor mostram que, nas últimas semanas do ano, as lojas de material de construção e os hipermercados (que vendem eletrônicos e eletrodomésticos), ambos mais dependentes de crédito, cresceram acima de 2022. As altas foram de 13,8% e 12,8% respectivamente (em valor), em lojas com mais de um ano, no período de 18 a 24 de dezembro frente ao ano anterior.
Apenas a cesta de eletrônicos medida pela NielsenIQ cresceu 30,5% em volume vendido frente a mesma semana do ano anterior – no acumulado do ano, houve queda de 4,4%. Há efeito, porém, de uma base de comparação em 2022 afetada pelos altos juros, que reduziram a demanda. Mas a Nielsen chama a atenção ao dado em seu relatório enviado a clientes.
Ainda no varejo de duráveis, em relatório de analistas do Citi, no fim de dezembro, o banco relatou que esteve em contato com o Magazine Luiza para captar “feedbacks” da varejista. “Entendemos que novembro foi um mais desafiador e dezembro mostrou uma melhoria sequencial (no crescimento de receita)”, disse o Citi no relatório.
Janeiro deste ano com o de 2023 tem um desempenho mais positivo”
— Fernando Yunes
O comércio que depende de ganhos de renda inclui itens mais essenciais, como alimentos, artigos farmacêuticos e combustíveis. Já o varejo ligado à crédito engloba bens duráveis, como móveis, eletrodomésticos e veículos.
Os dois grupos descolaram a partir de 2022, com o varejo ligado à renda rodando de forma estável acima daquele dependente do crédito, observa Igor Cadilhac, economista da equipe do PicPay. Em dois momentos de 2023, nota, essa “boca de jacaré” ficou perto de fechar.
O primeiro foi no segundo trimestre, quando houve o efeito do programa temporário do governo de incentivo à compra de veículos. Rodolpho Tobler, economista do FGV Ibre, observa que em junho daquele ano o varejo-crédito cresceu 4,9%, vindo de 0,5% em maio, enquanto o varejo-renda avançou apenas 0,8% no mês. Sem contar veículos o varejo mais ligado a crédito subiu apenas 0,4% em junho.
O segundo momento em que a distância esboçou redução foi no fim de 2023. Para esse caso, as explicações são menos claras, mas Cadilhac menciona a possibilidade de algumas linhas já estarem sendo beneficiadas pelo ciclo de corte de juros, iniciado em agosto.
Outro ponto importante, segundo ele, é que o pior momento do crédito à pessoa física ficou para trás. “Os dados atuais não chegam a ser animadores, mas tem uma melhora nos últimos meses.”
Varejistas de eletrônicos ouvidas pelo Valor no fim de 2023 já tinham identificado melhora no consumo de determinados produtos na virada de novembro para dezembro, mas com crescimento ainda desigual entre as categorias.
O superintendente de uma rede de eletrônicos forte no interior de São Paulo, com cerca de cem lojas, afirmou que vendeu mais ar-condicionado e ventiladores, devido ao forte calor em dezembro.
“Houve uma reação pequena em celulares. A linha branca [geladeiras, lavadoras] foi bem na Black Friday, mas no Natal nem tanto. E o segmento de ventilação surpreendeu e chegou a faltar produto”, disse o executivo.
Isabel Tavares lembra que as condições financeiras começaram a melhorar no último trimestre de 2023, embora os níveis de juros ainda estejam altos. “Começamos a ver um avanço para esses bens duráveis mais dependentes do crédito, mas eles ainda devem ganhar tração, principalmente no decorrer do segundo semestre de 2024, com a melhora mais significativa das condições financeiras”, afirma.
A economista cita também as pressões sobre os preços dos alimentos no fim de 2023 como um fator inibidor ao varejo ligado à renda. “Além disso, já começamos a ver alguns efeitos na desaceleração do crescimento da massa de renda, o que deve perdurar em 2024 e desacelerar também o ritmo desses segmentos”, diz.
Supondo que houve estabilidade do varejo em dezembro – mês para o qual os dados do IBGE ainda não foram divulgados -, Tobler estima crescimento de 2,7% do varejo-renda em 2023, com o varejo-crédito apenas um pouco abaixo, com 2,4%. Sem considerar os veículos, no entanto, o varejo-crédito, na verdade, deveria cair 3,4%.
“O varejo ligado à renda foi favorecido por bens essenciais, muito ligados à renda das famílias mais pobres”, diz Tobler. Ele observa que a confiança do consumidor de renda mais baixa deu um salto ao longo do ano, em meio a um mercado de trabalho forte, transferências governamentais em nível elevado e inflação sob controle.
Já o varejo ligado ao crédito, continua Tobler, até sofreu logo no choque inicial da pandemia, mas, depois, com os juros muito baixos e as pessoas em casa, esses segmentos viveram um bom momento. “Desde 2022, porém, o varejo-crédito veio desacelerando, o que faz sentido com os juros começando a subir, as pessoas ficando mais endividadas e cautelosas”, afirma.
Em 2023, diz, a renda média do trabalho sobe, mas ainda é baixa, enquanto a informalidade no mercado continua alta. “Itens ligados a crédito também são, em geral, itens mais caros”, observa.
Para 2024, a perspectiva é que a aproximação entre o varejo ligado ao crédito e o dependente da renda, vista no fim de 2023, se mantenha, diz Cadilhac. Ele espera que o mercado de trabalho siga aquecido até, pelo menos, meados do ano. Além disso, há a regra de valorização do salário mínimo e a inflação comportada. Todos esses fatores podem liberar mais renda disponível para as famílias.
“Vimos que o varejo ligado a renda se manteve relativamente estável ao longo do tempo. Se as pessoas estiverem mais confortáveis, podem então começar a tomar mais crédito”, diz. Não à toa, cita, o próprio Banco Central projeta crescimento de 9% para o crédito livre à pessoa física em 2024, ante 7,5% esperados para 2023.
Tobler se diz mais cauteloso em imaginar que o resultado positivo do varejo-crédito no fim de 2023 ditará o ritmo dos próximos meses. “Acho que dezembro até pode ter um resultado favorável além da questão sazonal, porque foram segmentos que sofreram muito e adotaram estratégias para estimular as vendas. Mas, para 2024, acho que ainda será desafiador”, afirma.
Por mais que os juros estejam caindo e o endividamento das famílias também dê sinais de melhora, os patamares ainda são elevados, pondera. “O varejo ligado à renda deve continuar em uma tendência favorável, embora em ritmo não tão forte. E o varejo ligado ao crédito pode ter um ano melhor do que 2023, mas essa distância entre os dois agrupamentos ainda deve permanecer por um tempinho”, diz Tobler.
No varejo on-line, Mercado Livre disse, nesta semana, que há sinais positivos na demanda para 2024. A empresa já tem se descolado dos rivais há alguns trimestres, na venda de duráveis e não-duráveis. “Se você pegar janeiro deste ano com janeiro de 2023 tem vindo um desempenho mais positivo”, disse Fernando Yunes, presidente do Mercado Livre no Brasil.
Apesar de menos dependente de crédito do que as lojas de bens duráveis, o comércio de moda tem utilizado mais ferramentas de financiamento nos últimos anos, e as perspectivas estão mais positivas desde o fim de 2023.
Na Renner, há sinais mais animadores, segundo analistas que estiveram com a empresa dias atrás. “O quatro trimestre parece ter sido o melhor trimestre de crescimento de vendas com margens saudáveis. Já compartilhamos esse otimismo e estimamos alta de 8,9% no trimestre nas vendas ‘mesmas lojas’ [unidades com mais de um ano]”, disse a equipe de analistas do Citi, após conversas com a empresa em dezembro.
André Cordeiro, economista-sênior do Banco Inter, também tem uma perspectiva melhor, porém cautelosa, para o varejo ligado ao crédito. A melhora da inadimplência, diz, será o fator mais relevante para esses segmentos, principalmente na parte de cartão de crédito e empréstimo a veículos, afirma.
Além da desinflação e de um mercado de trabalho em ritmo saudável, o programa Desenrola, para renegociação de dívidas das famílias, pode ter algum efeito em de aumentar a renda disponível das famílias, aponta Cordeiro. A melhora vai depender da velocidade da política monetária, diz.