Lojistas chineses que vendem em plataformas estrangeiras já criaram formas de burlar as novas regras de importação usando o mecanismo do Remessa Conforme, criado pelo governo com o intuito de reduzir brechas na lei e elevar a arrecadação.
A Receita Federal foi alertada por varejistas nacionais sobre as fraudes recém-criadas, e que são combinadas entre lojas e compradores por meio dos “chats” nos marketplaces e do WhatsApp, apurou o Valor.
Em nota, o órgão afirmou ontem que situações de descumprimento da legislação pelas empresas certificadas ao programa estão sendo monitoradas, e foram “devidamente comunicadas a essas empresas”, com prazo para resposta.
O esquema vem sendo oferecido pelos lojistas aos clientes brasileiros de um mês para cá, em mercadorias que custam acima de US$ 50 (cerca de R$ 250), segundo fontes. As manobras diferem daquelas que existiam antes do programa do governo exatamente porque se beneficiam das condições definidas no Remessa Conforme.
A intenção é criar subterfúgios que levem os produtos mais caros a entrar na faixa de preço de até US$ 50, definida no programa. Com isso, o comprador é beneficiado da isenção de imposto de importação de 60% que o Remessa Conforme concede às plataformas desde agosto. É preciso pagar apenas 17% de ICMS, o que torna convidativo para vendedor e comprador entrarem nessa faixa.
Quando a encomenda enviada supera US$ 50 (incluindo frete e seguro), ela fica fora do Remessa Conforme, e não tem o benefício da isenção. Passa a ser obrigatório o pagamento dos 60%, além de ICMS de 17%, o que leva a uma carga fiscal final de 92,7% — isso porque o imposto de importação compõe a base de cálculo do ICMS.
Há diferentes caminhos possíveis entre os desvios identificados pela reportagem, alguns acertados na surdina — segundo troca de conversas privada entre as partes — e outros apresentados pelo vendedor de forma mais aberta, no próprio anúncio da plataforma.
A reportagem identificou ao menos três manobras, todas envolvendo fraudes no pagamento dos tributos por meio da subnotificação do valor da mercadoria. As negociações acontecem a partir de um anúncio em que o vendedor já sinaliza que aceita negociar algo de forma paralela apenas para compradores do Brasil.
Como a informação de que acertos têm sido feitos tem crescido nas redes sociais e circula em canais de “youtubers”, há clientes que já conseguem localizar esses lojistas dentro dos marketplaces. A partir do anúncio na plataforma, é possível chamar o lojista para negociar nos “chats” privados.
Nesses acertos, há, por exemplo, a venda de mercadoria desmembrada em vários anúncios. Por exemplo, por uma mercadoria de R$ 600, o cliente tem acesso a um link de um anúncio de R$ 200 pelo item que o cliente quer, ou um produto inferior. O vendedor envia esse link ao comprador por WhatsApp ou no chat.
O comprador, então, faz três compras no anúncio de R$ 200, para dar os R$ 600 da mercadoria, e, com isso fica abaixo dos R$ 250 (US$ 50), e se beneficia da isenção.
No fim das contas, o lojista envia ao país três pacotes (relativos às três compras fechadas), mas em apenas um pacote está o item de R$ 600. O restante dos pacotes são enviados vazios. Isso tem sido feito em diferentes faixas de preços.
Outro esquema é o uso de cupons ou códigos de desconto. O cliente aplica um cupom enviado pelo vendedor, que reduz o valor da remessa a ser informada à Receita. Para exemplificar: a mercadoria custa R$ 500, e o cliente paga R$ 200 no site, após usar o cupom, e fica apto à isenção de imposto. Os R$ 300 que faltam são pagos por fora, diretamente ao lojista, por meio de plataformas de pagamentos internacionais.
O cupom, inclusive, pode ser usado várias vezes na compra, até atingir o valor final falso acordado entre as partes. Lojistas e consumidores têm uso livre dos chats, o que permite os acordos.
A troca de informações nos chats segue a política definida em contrato entre lojista e as plataformas, que proíbe infrações a leis locais, mas esse ambiente não é alvo de verificação pelas empresas, segundo dois lojistas brasileiros ouvidos. “São milhares de mensagens todos os dias, é impossível checar tudo”, diz um deles.
Jorge Rachid, ex-secretário da Receita Federal, com 40 anos de experiência na área, lembra que esses subterfúgios configuram crime de descaminho definido no código penal, com reclusão de um a quatro anos. A lei pode ser aplicada para quem vende ou importa de forma fraudulenta. O descaminho é uma modalidade de sonegação fiscal relacionada a operações aduaneiras.
“Há uma subfaturamento para escapar do imposto, é um conduta ilícita, um crime”, diz. “Se a Receita fica a par disso, as áreas de inteligência são acionadas para mapear as irregularidades e devem aprimorar e atualizar os seus controles a essa nova realidade”, afirma ele.
Como algumas manobras levam ao envio de pacotes vazios, Rachid lembra que a Receita deve estar mais atenta ao peso das remessas para identificar as fraudes.
Na loja on-line da Xiao Mi 3C Digital Store, no site e “app” do AliExpress, são vendidos dois modelos de amplificadores de sinal wifi da Xiaomi. No anúncio, na aba de informações gerais, o vendedor diz que no Brasil agora há a tarifa total de 92% acima de US$ 50, e pede, então, para que o interessado encomende com ele diretamente.
Esse vendedor tem sua sede na província chinesa de Guangdong, um dos polos de produção de eletrônicos naquele país.
“Não pague a encomenda, contacte-me para modificar o preço. Vou combinar isso em um pacote e enviá-lo […] Vou dizer-lhe como encomendar a mercadoria”, afirma em recado na página da oferta.
No chat, em conversa privada, o Valor apurou que a loja pede ao cliente que compre duas vezes o modelo mais barato, abaixo de US$ 50 (com isenção), para totalizar o valor do modelo mais caro. Se o cliente comprasse direto o modelo mais caro, teria cobrança de impostos. Esse item, negociado com esse vendedor, sai por cerca de US$ 100 (R$ 500), e no Brasil, o mesmo amplificador custa entre R$ 1 mil e R$ 1,4 mil.
Horas após o Valor procurar a empresa ontem, pelo chat da loja, os anúncios aos brasileiros não estavam mais acessíveis. Procurada, a Xiao Mi 3C Digital Store não respondeu aos contatos.
Outro vendedor citado pelos “youtubers” que chegou a oferecer opções de venda com imposto menor é a AData Official Store, que afirma ser a loja oficial da Adata, fabricante de itens como memória e discos rígidos de Taiwan.
O lojista vendia, na semana passada, também no AliExpress, um SSD de última geração (que armazena dados) com a opção de envio com “baixo imposto comprar x2”.
Um dos youtubers que trabalha nesse meio, Fabricio Pereira, do canal “PC do Fafa”, com quase 180 mil inscritos, cita em vídeo da semana passada esse anúncio. “No ato da compra tem a opção de pagar menos imposto. Se clicar nela , o vendedor mandaria o SSD de 2 terabytes, que custa mais que US$ 50”, disse. Pereira não afirma que fez a compra, apenas mostra a oferta veiculada.
Esquemas que envolvem a remessa de embalagens vazias acabam aumentando o número de pacotes que passam pelos canais de desembaraço da Receita, e podem entrar na contagem do Fisco como sendo uma remessa real. “Isso pode dar problema, e talvez sejam expulsos ou recebam advertência”, diz Pereira no vídeo.
Ontem, o anúncio da loja de produtos da Adata não tinha mais essa opção de compra. Procurado para comentar, o vendedor não se manifestou.
Pereira afirma que maneiras de burlar o imposto são sinal de “desespero” dos lojistas. “Conversei com alguns vendedores da China pelo chat e eles dizem que foram pegos de surpresa pelo Remessa Conforme. Os brasileiros são os principais compradores deles e eles estão com produtos encalhados e desesperados”, diz.
Uma ação comum de lojistas, não entendida pelas plataformas como ilegal, refere-se à venda de produtos de forma fracionada, ou seja, em partes. Vendedores da Shopee e AliExpress já oferecem essa opção (veja na arte ao lado)
Trata-se da venda de equipamentos de saúde, produtos eletrônicos e de tecnologia de maneira fragmentada, e o comprador monta tudo em casa. Um manual de instruções em chinês é enviado junto com a remessa.
A varejista Hera Medical, de Hong Kong, vende flash de câmeras para dentistas em duas partes, e menciona a medida após mudanças nos impostos no Brasil, em agosto. A marca opera na Shoppe no Brasil e na AliExpress.
Na Shopee, há uma chamada no anúncio a consumidores brasileiros, na cor verde e amarela: “Brasil: ligação com impostos baixos”. “Primeiro encomende o suporte e pague. E peça as lâmpadas e pague. Desta forma ambos os produtos serão inferiores a US$ 50”.
Na avaliação de um diretor de marketplace estrangeiro, nesse caso, “o vendedor se adapta a uma nova realidade”, mas os impostos estão sendo pagos em cada peça, afirma ele.
Questionada, a loja afirmou que não acredita que seja algo ilegal, “é uma encomenda em duas partes”, afirma. Outra possibilidade, diz o lojista, é comprar cartões presente que são oferecidos por ele e usar como cupom de desconto.
O Fisco já tomou conhecimento de vídeos em redes sociais em que compradores, “youtubers” e comerciantes comentam formas de burlar as regras.
Nas últimas duas semanas, portanto no período em que todas as plataformas asiáticas (AliExpress, Shopee e Shein) já operavam no Remessa Conforme, esses vídeos começaram a ser postados.
São nove com esse teor, apurou o Valor, com títulos como: “O chinês descobriu como burlar o Remessa” , ligado ao site Iuri Indica, ou “Urgente!As novas soluções para burlar o Remessa”, do canal Tecnan, e ainda “Chinês burlou a taxa?”, do canal de Daniel Sonnora.
Somados, esses nove vídeos acumulam 326,8 mil visualizações em canais que somam 750 mil inscritos. Há tanto casos de citações mais gerais, como os tipos de fraudes e como se dá o acesso aos lojistas.
Para permanecer no Remessa Conforme, as plataformas têm responsabilidade de fiscalizar os lojistas, sob pena de ter cassada a habilitação ao programa.
O Valor apurou que a Receita já teria alertado o AliExpress dos problemas, e a plataforma se comprometeu a apertar o cerco.
Procurado, o AliExpress afirma, em nota, que está investigando casos identificados e que as regras da plataforma serão aplicadas, caso se verifique seu descumprimento. Afirma ainda que seu negócio sempre foi focado no desenvolvimento e digitalização do varejo no longo prazo, que mantém “um diálogo aberto e transparente com as autoridades reguladoras” e tem uma “rigorosa política de vendas” que proíbe o desrespeito às leis.
Afirma ainda que, proativamente, usa ferramentas de inteligência artificial para remover vendedores e anúncios, e penalizar consumidores que desrespeitam as regras. E se for identificado que o vendedor está violando as políticas, com negociações externas, “ele será punido e poderá ser definitivamente excluído do nosso marketplace”, diz.
O AliExpress lembra que os lojistas também são individualmente responsáveis por cumprir as leis, e permanece em contato com as autoridades para garantir um ambiente favorável aos negócios.
A Shopee informa que segue rigorosamente as regras do Remessa Conforme, exige que lojistas também as cumpram, e promove conteúdos educativos para evitar violações. Afirma que, ao tomar conhecimento de qualquer infração, toma as devidas ações como o banimento de produtos e, dependendo da severidade, dos vendedores. Mais de 90% dos pedidos no país são de lojistas do Brasil.
A Receita Federal informa que situações de descumprimento da legislação tributária e aduaneira estão sendo monitoradas pelo órgão e devidamente comunicadas a essas empresas, com prazo para esclarecimento da situação.
Caso se confirme o descumprimento, a empresa deve se ajustar para garantir a continuidade no Remessa Conforme, afirma. Diz que segue aplicando a gestão de risco para as encomendas, para verificar irregularidades, com a consequente aplicação da correta tributação, se preciso. Ainda afirma que há uma parceria entre Receita e empresas certificadas no programa e essas empresas não têm recusado melhorar seus processos de controle.